Pequenas Epifanias | Crônica de Caio Fernando de Abreu

PEQUENAS EPIFANIAS. Caio Fernando Abreu. In: Pequenas epifanias: crônicas (1986-1995). Porto Alegre: Sulina, p.13-15.

Há alguns dias, Deus — ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus — enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro. Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer — eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era bom. Não me entenda mal — não aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada. Dois ou três almoços, uns silêncios. Fragmentos disso que chamamos, com aquele mesmo descuido, de ‘minha vida’. Outros fragmentos, daquela ‘outra vida’. De repente cruzadas ali, por puro mistério, sobre as toalhas brancas e os copos de vinho ou água, entre casquinhas de pão e cinzeiros cheios que os garçons rapidamente esvaziavam para que nos sentíssemos limpos. E nos sentíamos. Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos, se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de mau me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa. Os olhos da outra pessoa me olhavam e me reconheciam como outra pessoa, e suavemente faziam perguntas, investigavam terrenos: ah você não come açúcar, ah você não bebe uísque, ah você é do signo de Libra. Traçando esboços, os dois. Tateando traços difusos, vagas promessas. Nunca mais sair do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas. Nunca mais sair daquele colo quente que é ter uma face para outra pessoa que também tem uma face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia atravancando o coração. Mas no quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto de Clarice Lispector — Tentação — na cabeça estonteada de encanto: “Mas ambos estavam comprometidos. Ele, com sua natureza aprisionada. Ela, com sua infância impossível”. Cito de memória, não sei se correto. Fala no encontro de uma menina ruiva, sentada num degrau às três da tarde, com um cão basset também ruivo, que passa acorrentado. Ela pára. Os dois se olham. Cintilam, prometidos. A dona o puxa. Ele se vai. E nada acontece. De mais a mais, eu não queria. Seria preciso forjar climas, insinuar convites, servir vinhos, acender velas, fazer caras. Para talvez ouvir não. A não ser que soprassse tanto vento que velejasse por si. Não velejou. Além disso, sem perceber, eu estava dentro da aprendizagem solitária do não-pedir. Só compreendi dias depois, quando um amigo me falou — descuidado, também — em pequenas epifanias. Miudinhas, quase pífias revelações de Deus feito jóias encravadas no dia-a-dia. Era isso — aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria. Atrás das janelas, retomo esse momento de fel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania. Com corpo e face. Que reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então. E quase paro de sentir fome.

Um Pequeno Herói (Fiodor Dostoiévski) – Resenha

Podia-se esperar algo taciturno, mas o livro acaba sendo um refúgio mental de Fiodor, uma novela inocente sobre a descoberta do primeiro amor de uma criança.

Recentemente uma faculdade de Milão cancelou aulas de estudo de Dostoiévski por conta da investida russa na Ucrânia. Esse livro, do autor, foi escrito em 1849 de dentro da prisão. Dostoiévski foi preso numa perseguição czarista a grupos que se reuniam para discutir a democracia e a revolução operária. Ficou 8 meses preso num cubículo de 5m2 sem vela, sem banho de sol, com pouca comida e perseguido diariamente por pesadelos.

Podia-se esperar algo taciturno, mas o livro acaba sendo um refúgio mental de Fiodor, uma novela inocente sobre a descoberta do primeiro amor de uma criança. Diversas vezes reescrita e com um final brusco, esse texto não agradou Dostoiévski, à época condenado à morte.

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São Bernardo (Graciliano Ramos) – Resenha

Neste curto livro de Graciliano, acompanhamos Paulo Honório enquanto escreve suas memórias. Fazendeiro, conta de como fundou o sítio São Bernardo, também conta de como conheceu e se casou com a professora Madalena. No fim, descobrimos que ele visita suas memórias buscando nelas a razão de sua vida ter dado errado.

O livro é um exemplo de destaque do modernismo: logo no início, Paulo debocha do advogado que “queria escrever como Camões, de trás pra frente”. Paulo busca dar oralidade à escrita, tendo Graciliano, após escrito o livro, traduzido ele de português para “o brasileirês”.

Puro suco de Brasil modernista.

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Há quem prefira urtigas (Junichiro Tanizaki) – Resenha

“Shishosetsu”, a “Literatura do Eu”, é um estilo literário em primeira pessoa que mistura a ficção e a não-ficção com histórias profundamente confessionais. Após 700 anos de regimes militares, ele marca a primeira vez que os japoneses puderam escrever sobre si mesmos livremente. Sobre seus pensamentos, sentimentos, segredos, confissões e, principalmente, sobre a dualidade de um Japão que experimentava a liberdade pela primeira vez.

Entre o anos 1910 e 1950, o Shishosetsu foi composto por livros que falavam sobre depressão, pedofilia, suicídio, orientação sexual, crimes e outras coisas que até então estavam escondidas.

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Entre negronis e limerancias

Obviamente cheguei no rolê cedo. Não sei mais ser solteiro. Era um sábado frio e tinha marcado 19h com um amigo e uma amiga na Cinelândia. Às 19h eu já estava lá e eles disseram que ainda iam demorar. Fui tomado por uma tristeza bem intensa. Andei um tempo por ali, entre os mendigos e a pequena multidão que entrava no Theatro Municipal pra assistir ao Lago dos Cisnes. Eu queria ver, mas não consegui ingresso. Quando começou o espetáculo, na Cinelândia só restaram os mendigos e o frio. E eu.

Entrei no amarelinho, pedi um chopp. Lembrei do tempo em que a solidão não me parecia tão enclausurante. Eu gostava, até. Acho que é porque morava com meus pais, estudava e trabalhava. A solidão nesses casos é um luxo. Numa noite fria, não. Naquela, especificamente, eu estava bem triste.

Notei um quadro escrito Negroni. Pedi um. Gin, vermute, campari, uma fatia de laranja e uma pedra grande de gelo. Isso não me diz muito – detesto gin, não sei o que é campari nem vermute. Laranja eu sei. Mas Negroni tem um branding que me pega, é um ruim gostoso.

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Resenha: A Morte de Ivan Ilitch, 1886 (Lev Tolstói)

Resenha | A morte de Ivan Ilitch, de Lev Tolstói – Valeu, Gutenberg!

Um funcionário público, ascendente na carreira jurídica, um dia sente uma dor do lado esquerdo na barriga.

Após uma breve passada por sua história, acompanhamos os últimos meses desse funcionário, à medida que essa dor toma o protagonismo de sua vida, tornando a existência uma agonia para si e para todos ao redor.

Este livro, que tem por volta de 70 páginas, é um convite para refletirmos não sobre a morte de Ivan, mas sobre a nossa própria morte e a vida que escolhemos.

Sinceramente, por ser tão curto, o livro não me trouxe nenhuma grande reflexão, e não acho que se justifique qualquer hype nele. Se por um lado a leitura é rápida, sinto que também a esquecerei rapidamente.

Resenha: Do que eu falo quando falo de corrida (2010)

Devolva meu livro, por favor: Do que eu falo quando eu falo de corrida  (Haruki Murakami)

Eu comecei a correr em 2021 para perder os quilinhos da quarentena e acabei encontrando na corrida um hobbie bem envolvente. Só que correr não necessariamente é algo divertido ou prazeroso. Em geral, é algo cansativo que vai contra a vontade primordial do corpo de preservação. É preciso estar constantemente se motivando para manter o hábito, pois 100% do tempo há uma voz no fundo da cabeça repetindo um milhão de desculpas para não correr.

É preciso estar a todo instante focado no único motivo que faz a corrida valer a pena: o banho de serotonina após o fim do exercício, com a sensação de dever cumprido.

Manter-se motivado é um desafio e por isso procuro obras sobre o assunto que me motivem. Foi o caso dessa, as anotações deste grande autor japonês sobre seu hábito de correr.

Para o Murakami, a corrida de longa distância é um esporte de força mental. Com condicionamento e os tênis adequados, correr é meramente exercer o domínio do corpo para manter as pernas correndo. Assim como escrever ficção. Correndo 10km todos os dias, a meta dele é fazer 300km por mês. Isso treina sua força mental para escrever mais e melhor.

No livro há relatos da primeira maratona dele (42km), dos treinos, das motivações, alguns trechos biográficos, algumas corridas que ele fez em locais inusitados (em Atenas, por exemplo). Há também o relato pessoal de uma ultramaratona do Japão: 100km em 10 horas. O que passa na cabeça de alguém que corre 100km em um dia?

Resenha: Almas Mortas, 1842 (Nikolái Gogol)

RESENHA #511] ALMAS MORTAS - NIKOLAI GOGOL

No boi há muito que se aproveite, mas dele ninguém vai tirar o leite.

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Tchitchicov queria comprar almas mortas. Thats the point. Você, nem ninguém, sabe o motivo. E é isso que faz o livro acontecer.

Como uma câmera que vai passando de casa em casa, do mais baixo ao mais alto clero da Rússia do século XIX, Tchitchicov se adapta aos ciclos sociais, se apresenta como um agradável empreendedor, e tenta comprar almas mortas. Almas, no caso, são os servos, que são tratados como propriedade dos donos das terras.

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Resenha: A Morte do Pai, 2009 (Karl Ove Knausgård)

A morte do pai – Karl Ove Knausgård – Literateca

Eu diria que 70% desse livro é bom. O autor entra em um freestyle autobiográfico passeando por suas lembranças da juventude e adolescência. É como ler um blog ou o diário de um adolescente super bem escrito. São aquelas leituras fáceis e viciantes em que se entra num transe e 50 páginas passam num piscar de olhos.

Os outros 30% são elocubrações filosóficas que o autor faz aleatoriamente e você se pega pensando: Karl Ove, não é pra tanto. Voltemos aos fatos…

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Resenha: O Livreiro de Cabul, 2001 (Asne Seierstad)

Prestes a completar 20 anos, o livro se passa no Afeganistão, logo após o ataque às torres gêmeas. Uma jornalista convive com a família de um livreiro, um homem respeitado e ascendente social, símbolo das contradições de uma sociedade em transformação, retratando o cotidiano de diferentes membros do clã.

O Talibã, que voltou ao poder há algumas semanas, tinha acabado de cair justamente para os Estados Unidos. Com eles, levaram a institucionalização da ignorância e do radicalismo. Nas ruas ainda se encontra destroços, carros queimados, cartuchos de bala, e a violência ainda convive lado a lado, não só pela guerra recente, mas por estar profundamente entranhada na cultura.

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