Frederico, o aspirador-robô

Se alguma vez eu tive acesso a um sentimento de companheirismo autêntico, foi quando liguei meu aspirador-robô.

Às vezes a preguiça toma o controle e me deixo emergir no caos de uma casa desarrumada. Mas a subserviência do aspirador-robô, sempre pronto a ajudar, ativa em mim toda uma reserva de energia para arrumação.

Para otimizar o trabalho dele, preciso recolher as coisas do chão. Mas pô-las nas mesas? Não, isso só aumentaria a bagunça. Pô-las, portanto, no lugar que deveriam ser guardadas.

Continue Lendo “Frederico, o aspirador-robô”

Amore, vedi, sono solo

Eu tenho feito muitas coisas e isso me distrai um pouco. Numa hora estou conversando com o professor da autoescola, na outra converso com minha personal trainer. Às vezes o professor de violino me conta sobre a filhinha dele, minha terapeuta vai me conhecendo mais, converso um pouco com o dono do restaurante da esquina, ou com o zelador do prédio.

Com essas migalhas de sociabilidade vou esquecendo minha solidão, vou me iludindo, talvez a vida seja isso mesmo. Os amigos estão lá, mas estão ocupados, e como não tenho ocupação, pago para ter com quem conversar.

Continue Lendo “Amore, vedi, sono solo”

Hoje estou com dor no pescoço

Pouco antes das 20h deitei para assistir Otoshiana, clássico japonês de 1962 sobre um minerador em condições análogas à escravidão que é assassinado por engano e, após morto, permanece em cena como espírito acompanhando o desenrolar dos fatos.

Tudo corria bem quando por um segundo de desistência “depois eu volto um pouco o filme” e os olhos pesados, uma respiração extensa, uma batida na porta: toc toc, era uma pessoa do meu trabalho, “vim fazer home office aqui contigo”, “mas agora?” e ela sai entrando.

Coloca o notebook na mesa, olha em volta, entra no quarto e de repente o restaurante em Santa Teresa que meu chefe comentava, ele próprio está lá também, os olhos claros, o cabelo branco, o sorriso, ele é legal demais para ser um chefe, trabalha apenas para pagar as prestações do sítio paradisíaco em Lumiar, estava satisfeito com o terreno que tinha mas o vizinho detestável tinha o controle sobre uma ponte, a única que dava para passar com carro, então ele comprou o terreno do vizinho também. “Aqui tem o melhor bacalhau de todos”, estava escuro e iluminado por velas mas agora amanheceu e já estamos descendo a ladeira de Santa Teresa.

Entramos no carro mas quem veio foi o professor da autoescola, e aquela sensação, aquela deixadinha, como se caísse, um pequeno sustinho, o espírito que vai te deixando, a falta de controle, mãos atadas: o carro morre. Sangue frio, relaxado. Liga o carro, passa a marcha. Como é bonita essa praia aqui do Rio, vamos andando, as pessoas são muito estressadas. “Eu prefiro Minas, lá as pessoas são muito mais agradáveis”, ele disse com a voz fanha enquanto equipava seu personagem no Fortnite do celular. “Ia muito pra Minas”, eu digo mas penso depois que nem foi tanto assim, uma vez, duas forçando, mas agora não vale corrigir.

O pescoço reclama de dor, já está de madrugada e eu acordo no sofá. Pelo menos a TV se desligou sozinha.

Da Força Mental e Disciplina

Talvez a grande e principal descoberta do ano de 2023 foi a Força Mental, para além dos vídeos motivacionais de Youtube. Haruki Murakami lançou esse livro Do Que Eu Falo Quando Falo de Corrida, em que conta suas experiências, treinos e reflexões acerca do ato de correr.

Para ele, correr é um esporte de força mental. O estado natural do corpo é ficar em repouso: correr é algo estressante, e portanto passamos o tempo todo criando desculpas para não fazê-lo ou para parar.

Continue Lendo “Da Força Mental e Disciplina”

Não sou um gênio: cheguei aos 28

Minha equipe tinha o hábito de valorizar muito os aniversários. A gerente, uma fofa, chegava sempre com presentes, aquela coisa bem tradicional de dar roupas ou coisas que combinassem com a pessoa. No aniversário dela, a equipe inteira se reuniu para dar-lhe um jogo de chá de quase R$500.

Eu não me deixava levar por isso, não queria criar expectativas para o meu aniversário. Quando via os outros, pensava em silêncio: no meu, aposto que não receberei nada. Imaginava os cenários – vai ter algum evento, algum grande problema que roubará totalmente a atenção. Ainda que um discreto fantasma sussurrasse às vezes no meu ouvido: mas vai que tu ganha alguma coisa…

Continue Lendo “Não sou um gênio: cheguei aos 28”

Como são lindas as coisas que os pais fazem pelos filhos

Meus pais sempre tiveram a tradição de almoçarmos no shopping aos sábados. Íamos eles, eu e meu irmão. Meus pais almoçavam num “à quilo” que eu detestava. Quando minha mãe dizia “à quilo” eu achava que ela estava dizendo “aquilo”, como uma referência a um determinado tipo de comida básica que não merecia esclarecimento. Aquilo: um arroz com farofa e frango. Aquilo. Eu e meu irmão íamos no McDonalds: eram as únicas opções do Shopping da Penha, um shopping que é escuro até nos dias claros, como se o dono quisesse economizar na luz, como se o designer do ambiente tivesse abaixado o medidor de brightness. O McLanche nunca era suficiente – exceto quando vinha com algum brinquedo que quiséssemos, nesse caso era mais do que suficiente. Nos demais, um X Burger se encarregava, como se aquela fatia de queijo fizesse uma grande diferença. Fato é que podíamos assim engolir rapidamente nosso X Burger e correr para o X Games, o ambiente que ficava nos fundos da praça cheio de fliperamas incríveis. O clássico jogo de hóckey de mesa. Fliperamas com Street Fighter e Metal Slug. Mais à esquerda tinha ela, a construção arquitetônica considerada uma das 7 maravilhas da Penha, a única capaz de fazer frente à Igreja da Penha e muito, mas muito mais envolvente do que o Baile da Penha. Eu me pergunto como aquilo foi parar ali. Como aquelas estátuas foram parar na Ilha de Páscoa? Como as estrelas foram parar no céu? Como Bolsonaro foi parar na presidência? Dentre todas essas loucuras que não fazem sentido, me pergunto quem foi o iluminado que resolveu levar aquele carro para dentro dos recônditos da Penha. Um carro diferente: não tinha rodas nem volante. Era só a carcaça e dois bancos. Na parte da frente, uma tela do teto ao chão onde zumbis tentavam te atacar. Em frente ao banco, duas armas vermelhas que, tão logo você inserisse a ficha, tornavam-se sua maior esperança para sobreviver ao ataque zumbi.

Eu e meu irmão nunca pusemos a ficha nela. Porque simplesmente segurar a arma e apertar o gatilho, mesmo que sem nenhum efeito, já era toda a diversão. Enquanto meus pais comiam aquilo, gastávamos a ficha no hockey de mesa e no Street Fighter, que era igual ao que tínhamos em casa, mas mais divertido porque ali eu perdia pro meu irmão em um fliperama.

Ao lado do McDonalds, uma das coisas mais simbólicas da minha infância, que foi dramaticamente obliterada por aquele filme do cara que só come mcdonalds por 6 meses. Um grande salão de festas em cujas paredes estavam desenhados os personagens da Turma do Ronald. E quando do dia 31 de outubro, meu aniversário de 6 anos, meus pais alugaram o local para uma grande festa com open bar de hamburger. Hoje eu lembro e me enternece o coração. Como são lindas as coisas que os pais fazem pelos filhos. Como devia arder o coração dos meus pais me olhando brincar naquele salão, naquele dia. Eu só queria saber dos hamburgers. Era a única vez que eu podia comer mais de um. Geralmente, meu pai não tinha dinheiro. Ali, era de graça. E ao fim do segundo eu já estava passando mal, mas não queria desistir. Meu pai disse: vai brincar com seus amigos, Guiguinho. Mas eu precisava comer. Eu preciso comer, pai. Brinca um pouco e depois quando esvaziar a barriga come outro. E eu atendi, fui brincar enquanto ele comia o resto do hamburger e raspava os picles que eu deixei num cantinho. Pouco mais me lembro daquele dia, só desse diálogo, que me volta sempre que eu penso com carinho na infância. Lembro também da linda torta de chocolate com granulado que o McDonalds oferecia no pacote da festa. Um menino apagou as velas antes de mim no parabéns. Mais tarde, quando todo mundo foi embora, minha mãe reclamou sozinha do menino, que me roubou aquele desejo.

O banheiro do Maracanã, um local sacro

Este post é a continuação desse dia aqui.

Então era a vez do meu verdadeiro amor: Fluminense.

Noite de estreia de um dos uniformes mais bonitos que já vi na vida. Que orgulho torcer pra um time verde, branco e grená: todas as combinações são lindas.

Um estádio de futebol é uma situação cheia de estímulos, de mecanismos próprios, de construção permanente de aleatoriedades.

Realidades paralelas se criam e acabam a todo instante, sem nenhuma reverberação sensível na realidade explícita.

Continue Lendo “O banheiro do Maracanã, um local sacro”

Quando o Nerd Calculista foi ao Museu Histórico Nacional

Fomos ao Museu Histórico Nacional, onde me lembrei de uma história intensa que vivi 15 anos atrás.

No quadro: a Batalha de Riachuelo, Guerra do Paraguai, Brasil e Argentina lado a lado.

Tive um date com uma argentina. Quando se está de férias existe um problema latente, que é: seus amigos não estão. Eles permanecem trabalhando e, portanto, indisponíveis para você.

Eis que aí os desocupados se unem. E nesse contexto fui encontrar companhia em uma menina de Buenos Aires, 29 anos, que passava as férias no Rio. O dia estava terrível, chovendo ininterruptamente, céu mais fechado que evangélico a ideias progressistas, mas eu mantinha uma animação recalcitrante.

Continue Lendo “Quando o Nerd Calculista foi ao Museu Histórico Nacional”

Um Pequeno Herói (Fiodor Dostoiévski) – Resenha

Podia-se esperar algo taciturno, mas o livro acaba sendo um refúgio mental de Fiodor, uma novela inocente sobre a descoberta do primeiro amor de uma criança.

Recentemente uma faculdade de Milão cancelou aulas de estudo de Dostoiévski por conta da investida russa na Ucrânia. Esse livro, do autor, foi escrito em 1849 de dentro da prisão. Dostoiévski foi preso numa perseguição czarista a grupos que se reuniam para discutir a democracia e a revolução operária. Ficou 8 meses preso num cubículo de 5m2 sem vela, sem banho de sol, com pouca comida e perseguido diariamente por pesadelos.

Podia-se esperar algo taciturno, mas o livro acaba sendo um refúgio mental de Fiodor, uma novela inocente sobre a descoberta do primeiro amor de uma criança. Diversas vezes reescrita e com um final brusco, esse texto não agradou Dostoiévski, à época condenado à morte.

Continue Lendo “Um Pequeno Herói (Fiodor Dostoiévski) – Resenha”