Com licença, o senhor não é o Oswaldo Montenegro?

Eu tinha 18 anos quando um amigo me convidou para um musical na Barra em que uma amiga dele atuaria. A mãe dele nos levou de carro, e apesar de ser uma produção pequena, amadora, a história e a peça inteira foram super impactantes: falava do amor de Léo e Bia, adolescentes de Brasília, “no centro de um planalto vazio”, que se apaixonam frequentando uma trupe de teatro. A trupe está sufocada pelos prédios de Brasília e pela ditadura militar, e quer tentar a vida respirando os ares do Rio de Janeiro. Mas a mãe de Bia é uma carcereira nefasta que pretende acabar com seus sonhos; e Léo se sente responsável por resgatar a amada.

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A arquirrival

Quando eu tinha 8 anos me surgiu uma Pinta. Marrom, redondinha, no meio das costas.

Minha mãe, ressabiada, levou no dermatologista. Ela já havia retirado uma série de cânceres (?) de pele, alguns de maneira mais traumática, outros mais tranquilos.

Melanoma. Não era nada de mais, mas era melhor retirar, disse o doutor. E aí nós voltamos lá de novo, o cara me deu um beliscão com a anestesia e retirou o tecido cancerígeno. Meus pais me deram uma revista da Turma da Mônica, edição na qual o Cebolinha era Dom Pedro I, como prêmio pela minha coragem.

Aquela batalha iniciaria uma rivalidade que se estende há 20 anos. Não é nada tão relevante quanto um Fla-Flu, é mais algo pequeno, mas que às vezes incomoda, como um Botafogo.

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Ergo meus quieto

A primeira vez que me matriculei numa academia eu tinha 15 anos e ela se chamava Seven, lá em Olaria. Lembro de marcarem minha avaliação para as 9h da manhã.

Numa salinha minúscula, um professor gigante me perguntou o que eu queria. A gente nunca sabe o que quer da academia, mas sabe que quer alguma coisa que só ela pode dar. Por mais que a ideia “quero ficar gostoso” exista, é difícil especificar exatamente o que é um corpo gostoso. Até porque, tão logo você diga que faz musculação, alguém prontamente se dispõe a dizer “Eu não gosto de corpo musculoso”, como se por uma desatenção eu pudesse me transformar no Henry Cavill. Você precisa explicar que quer ficar com um corpo ali no meio do caminho.

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A Armadilha (Otoshiana, 1962) | Crítica

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Primeiro longa-metragem de Hiroshi Teshigahara, “A Armadilha” é um filme de 1962 que explora o mundo dos vivos e dos mortos, as condições de trabalho difíceis para os mineiros e como a maldade pode afetar as pessoas mesmo após a morte.

Otoshiana mistura elementos de fantasia, suspense e horror para criar um “documentário fantástico” sobre violência e trabalho. Um pai e filho fugindo de algo desconhecido encontram um vilarejo de mineiros. Procurando uma ocupação, o pai acaba sendo assassinado. Imediatamente seu espírito se desprende do corpo e passa a acompanhar o desenrolar da investigação do homicídio.

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Round 1: A maldita, infernal e traumática tortura do Detran-RJ

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Era 3 de janeiro quando o despertador tocou às 4h30 da manhã. Já abri os olhos nervoso e apreensivo. Eu não sabia de nada do que me esperava dali por diante, mas o raios de sol alaranjados que entravam timidamente pela janela asseguravam: ia fazer muito calor.

Às 5h eu estava no ponto de encontro. Um carro parou do outro lado da rua. “Autoescola do Meier”, dizia na lateral do Mobi preto. Eu e mais 3 rapazes nos aproximamos e entramos no carro.

Eu estava, puta que pariu, eu estava indo fazer a prova prática da autoescola.


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“Athena” (2022) é um lindo filme sobre uma revolta feita por jovens educados | Crítica

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Sinopse:
Após viralizar um vídeo de policiais espancando um adolescente pobre de 13 anos até a morte, 3 irmãos do gueto árabe Athena lideram um levante civil contra a polícia francesa.

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Opinião sobre “Athena”:

A primeira cena do filme é uma das melhores em muito tempo: um plano sequência inacreditável, pulsante, de jovens invadindo uma delegacia, roubando suas armas e fugindo em alta velocidade, em clara declaração de guerra. Naquele momento, acabara de estourar uma revolta civil.

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“Nada de Novo no Front” (2022) preenche a cota de filme de guerra da vez | Crítica

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Sinopse:
O adolescente Paul é convocado para atuar na linha de frente da Primeira Guerra Mundial. O jovem começa seu serviço militar de forma idealista e entusiasmada, mas logo é confrontado pela dura realidade do combate.

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Opinião sobre “Nada de Novo no Front”:
A ideia de dar este nome à peça certamente veio de alguém que, com uma certa dose de ironia e ceticismo, percebeu que a história e o filme não traziam nenhuma novidade para a discussão sobre como retratar a guerra. Os acontecimentos, as cenas, os planos, tudo é apenas um exercício de fazer bem coisas que já foram feitas.

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Pequenas Epifanias | Crônica de Caio Fernando de Abreu

PEQUENAS EPIFANIAS. Caio Fernando Abreu. In: Pequenas epifanias: crônicas (1986-1995). Porto Alegre: Sulina, p.13-15.

Há alguns dias, Deus — ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus — enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro. Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer — eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era bom. Não me entenda mal — não aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada. Dois ou três almoços, uns silêncios. Fragmentos disso que chamamos, com aquele mesmo descuido, de ‘minha vida’. Outros fragmentos, daquela ‘outra vida’. De repente cruzadas ali, por puro mistério, sobre as toalhas brancas e os copos de vinho ou água, entre casquinhas de pão e cinzeiros cheios que os garçons rapidamente esvaziavam para que nos sentíssemos limpos. E nos sentíamos. Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos, se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de mau me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa. Os olhos da outra pessoa me olhavam e me reconheciam como outra pessoa, e suavemente faziam perguntas, investigavam terrenos: ah você não come açúcar, ah você não bebe uísque, ah você é do signo de Libra. Traçando esboços, os dois. Tateando traços difusos, vagas promessas. Nunca mais sair do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas. Nunca mais sair daquele colo quente que é ter uma face para outra pessoa que também tem uma face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia atravancando o coração. Mas no quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto de Clarice Lispector — Tentação — na cabeça estonteada de encanto: “Mas ambos estavam comprometidos. Ele, com sua natureza aprisionada. Ela, com sua infância impossível”. Cito de memória, não sei se correto. Fala no encontro de uma menina ruiva, sentada num degrau às três da tarde, com um cão basset também ruivo, que passa acorrentado. Ela pára. Os dois se olham. Cintilam, prometidos. A dona o puxa. Ele se vai. E nada acontece. De mais a mais, eu não queria. Seria preciso forjar climas, insinuar convites, servir vinhos, acender velas, fazer caras. Para talvez ouvir não. A não ser que soprassse tanto vento que velejasse por si. Não velejou. Além disso, sem perceber, eu estava dentro da aprendizagem solitária do não-pedir. Só compreendi dias depois, quando um amigo me falou — descuidado, também — em pequenas epifanias. Miudinhas, quase pífias revelações de Deus feito jóias encravadas no dia-a-dia. Era isso — aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria. Atrás das janelas, retomo esse momento de fel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania. Com corpo e face. Que reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então. E quase paro de sentir fome.

Aftersun (2022), um filme sobre coisas que não são ditas | Crítica


O segundo filme da Maratona Oscar 2023 foi Aftersun, que assisti no cinema Estação Net, lá em Botafogo, o melhor lugar do mundo.

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Sinopse:
Sophie reflete sobre a alegria e a melancolia das férias que ela tirou com seu pai 20 anos antes. Memórias reais e imaginárias preenchem as lacunas enquanto ela tenta reconciliar o pai que conheceu com o homem que desconhecia.

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“Argentina, 1985” e o julgamento mais importante desde Nuremberg | Crítica

Começou a temporada Oscar 2023 aqui no Emo Tropical! Começamos, é claro, pelos estrangeiros. Assim como na Copa do Mundo, a Argentina deixou o Brasil pra trás e representa a América do Sul na corrida com “Argentina, 1985”.

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Sinopse:
Um promotor amanhece com o maior pepino que um advogado pode receber – processar os 9 ditadores do regime militar que acaba de cair. A tarefa é tão ingrata e perigosa que ninguém quer ajudá-lo. Em meio a ameaças de morte e intimidações, ele forma uma equipe com jovens advogados e vai à forra com aqueles milicos malditos, naquele que acaba sendo o julgamento mais importante da história da Argentina.

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