
Eu tive uma boa semana, e basta uma boa semana para que todos aqueles pensamentos dos dias ruins me pareçam dramáticos e um pouco fora do tom. Quando penso no que falei, me sinto até um pouco bobo.
Em uma boa semana, a vida parece fazer sentido, consigo me enganar aqui e ali e encontrar em pequenas indulgências a motivação para continuar.
A cada vez que visito dias escuros, me apego mais e mais à Lena, minha afilhada. Já tem meses que sinto que seria impossível eu amá-la mais. Mas, a cada dia que passa, experimento novas sensações anexas ao amor infinito. Diante daquele rosto redondo, daqueles olhos claros e daquela língua plesa.
Eu sou o melhor amigo dela, e ela é minha melhor amiga. Quando estou por perto, ela não me deixa ficar distante um segundo. Me puxa para pertinho, usa a mão inteira para pegar um único dedo meu, e a frase “Vem, Guigui” é a que mais repete.
Ela é perfeita a todo instante, a todo trejeito, e quando estou com ela penso que não é possível existir nenhuma tristeza no mundo. Até que a menor das coisas a aflija, e experimento então uma tristeza 50 vezes maior do que a que ela sente.
No domingo íamos a uma festa infantil, mas estava cedo, então resolvemos passar antes num bar em Santa Teresa onde estavam meus amigos.
Enquanto tomávamos cervejinhas e falávamos sobre tatuagens e empregos ruins, a pequena Lena estava sentada na mesa com seu livro de colorir. Eu tinha ido para ver meus amigos, mas não consegui não passar a maior parte do tempo colorindo com a Lena. Ela, tímida e alheia àquele ambiente, parecia se refugiar no livrinho de colorir, e eu quis me refugiar com ela para que não se sentisse sozinha.
Depois fomos para a festa e a situação inverteu, pois estávamos no ambiente dela, e enquanto as crianças pareciam enlouquecidas pelas quantidades desmedidas de açúcar, ela, que não come açúcar, observava a tudo com seus olhinhos. Guigui, você pode ir no pula-pula? Guigui, você pode ir na piscina de bolinha? Guigui, você pode ir comigo no binquedão? A tudo eu respondia que ia “perguntar pro moço se adultos podem ir”, e ela consentia.
O fato de a Lena não comer açúcar a torna uma criança mais sensível. Crianças de dois e três anos ficam trincadas, com os olhos fissurados, correndo, pulando, se debatendo, entre manhas e risos exagerados, com cáries nos dentes e possivelmente algum distúrbio alimentar. A tudo observa a Lena, que brinca também, mas sem aquela dose de insanidade e destruição que emerge das crianças açucaradas.
Mas nem sempre é fácil, como não foi fácil no dia seguinte, quando fui novamente à vila da Lena brincar com ela, e algumas meninas faziam uma festinha na frente da casa dela. A Isabela tivera a ideia de comemorar os 5 anos de amizade com a outra menina que não me lembro o nome, e convidaram a Lena.
Após 2 anos e meio criando a Lena a quatro paredes, é curioso e emocionante ver ela enfim interagindo com a sociedade. Não está mais em nossa redoma de cuidados, e tem certa dificuldade de entender algumas dinâmicas da vida em sociedade.
Ela gosta de brincar com bolas, mas pega a bola para si, diz que “é minha” e não divide com ninguém, exceto com o Guigui. Enquanto a mãe dela empreende discursos sobre a importância dividir a bola, eu busco brincadeiras práticas, como três cortes e galinha choca.
Nenhuma das abordagens tem o resultado esperado: a Lena pega a bola pra si e diz que quer escondê-la na casa dela. Enquanto ficamos rindo da Lena escondendo a bola embaixo da barriga, Isabela e a outra amiguinha aparecem com um bolo de chocolate e dizem que está na hora do parabéns.
Elas preparam uma mesa com o bolo e alguns doces, e no mesmo instante eu vejo o sorriso da Lena ir embora e dar lugar a um tom de preocupação. Mais do que nunca, ela insiste para o Guigui ficar perto dela. Chega a apontar para o chão e dizer firmemente: Guigui, eu quero que você fique aqui, aqui!!
As meninas partem o bolo e perguntam se a Lena pode comer. Nesse instante, ela me dedica um olhar puro de quem pede permissão. E nesse instante eu experimento um daqueles raros momentos em que o coração não cabe dentro de mim. Esses momentos são raros e memoráveis, e não existem palavras para defini-los ao certo, tamanho enternecimento. É como se eu pudesse entregar o meu mundo inteiro para a dona daquele olhar.
E então todo o clima do ambiente muda drasticamente. Porque a Lena não come açúcar, e imediatamente fica triste, cabisbaixa, sorumbática, ao descobrir que apenas ela não poderá comer o bolo. Tentando distraí-la, a mãe a leva para dentro de casa, onde prepara uma panqueca.
E então eu presencio aquela criança de dois anos lidando com a frustração, e eu não posso fazer nada. Quando ela entra em casa, tira os tênis e fica alguns instantes enrolando a própria meia dentro do tênizinho. Ela nunca faz aquilo, de sentar e ficar enrolando a meia, e eu pergunto o que ela está sentindo, e ela obviamente não sabe dizer.
Então eu digo “você ficou triste por não comer o bolo?”, pois quero estimulá-la a entender um pouco seus sentimentos, ainda que seja o sentimento de frustração. Ela não sabe responder, apenas fica longamente mexendo nas próprias meinhas, os olhos marejados. E toda a frustração que ela sente, eu sinto amplificada quatrocentas e cinquenta vezes.
Eu sei, eu sei. É preciso ensinar as crianças a lidarem com a frustração. Quando as meninas cortam o bolo e a Lena divide comigo sua angústia, eu não me importo de ser o porto seguro da coisinha que eu mais amo na face da Terra. Mas não é fácil.