Um rosto cubista

Tem gente que é bonita o tempo todo. Essas pessoas, eu presumo, sabem disso.

Elas têm consciência de seu privilégio, e constroem sua personalidade a partir dele. Seja buscando o título sobre-humano de ser uma pessoa bonita-e-legal, seja escorando em seu privilégio e se permitindo ser uma pessoa desprezível. Pois, por ser bonita, ainda assim gostarão dela.

Fato é que tudo na vida é mais simpático às pessoas bonitas, e ultimamente estou bonito. Já comentaram comigo entre amigos. Outro dia até uma estranha se aproximou de mim e disse “nossa, você é muito bonito, menino, parabéns!”. Em shoppings e praças, já fui convidado algumas vezes para ser modelo, e algumas pessoas sabem da minha experiência como colírio capricho.

Pra mim, é sempre curioso perceber que estou bonito, por que em diferentes momentos da vida eu já fui bonito, mas em muitos outros não fui, e transitar entre esses espectros é um processo permanente.

Eu sempre tento tangibilizar o conceito impossível de beleza. Eu sei, por exemplo, que entre o vigésimo e o vigésimo quinto dia após ir ao barbeiro Ney e pedir “o corte de sempre”, meu cabelo estará bonito. Esse é o momento. Antes, ele fica muito curto e, depois, fica muito grande.

Há alguns anos, eu raspava a barba só para deixá-la crescer bastante depois. Até que eu passei a usar barbeador, e, depois, passei a deixar o bigode. Foram estágios e testes longos e com muitos erros, mas que trouxeram aprendizados.

O bigode, por exemplo, não basta apenas deixá-lo, e é nisso que muita gente se perde. O bigode precisa ser desenhado, como todas as coisas belas do mundo. É preciso apará-lo nas pontas que, por serem pontas, destoam na grossura e dão a aparência de um pirata ou a de um arquiduque sem banho.

Se você não é o Johnny Depp, é melhor mirar no Orlando Bloom.

Também deve-se aparar nas entradas do nariz, que se afinam para cima, entrando fundo e se amalgamando aos pêlos nasais cuja função, diferente do bigode, é reter impurezas.

Por fim, com o dedo esquerdo, deve-se apertar o bigode contra os lábios, a fim de esticá-los, e com um barbeador ou uma tesourinha, aparar as pontas soltas, fazendo dos fios um caminho que tangencie o lábio superior.

Com práticas e processos seculares, vou aprendendo a moldar minha aparência em público, e há realmente quem acredite que estou bonito. Eu mesmo, após me preparar com carinho, chego a me olhar no espelho e pensar que, naquele momento, sou orgulhosamente um nota 8.

Mas a gente sabe que não é sempre assim. A gente se conhece em todas as situações.

Eu me conheço quando a luz branca reflete na pele oleosa de fim de dia, dando um tom cadavérico à tez cansada. Me conheço naquele ângulo em que todas as fotos ficam ruins. Como se meu rosto fosse o de um quadro cubista onde cada ângulo difere completamente do anterior.

Eu me conheço ao acordar nas manhãs de terça-feira, com os olhos fundos, o nariz inchado, o hidratante facial misturado na oleosidade da pele. Me conheço quando não faço chapinha, e meu cabelo vira um emaranhado de cachos disformes. Me conheço quando não tenho tempo de fazer cocô pela manhã e passo o dia inteiro me sentindo a nave do Robotnik.

Esses momentos de fragilidade me tornam uma pessoa passível de ser elogiada.

Aos bonitos, jamais um elogio – como não se elogia um rico por ser rico. Já aos transitórios, o elogio nada mais é do que a constatação de um momento efêmero e, por isso, digno de nota.


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