A arquirrival

Quando eu tinha 8 anos me surgiu uma Pinta. Marrom, redondinha, no meio das costas.

Minha mãe, ressabiada, levou no dermatologista. Ela já havia retirado uma série de cânceres (?) de pele, alguns de maneira mais traumática, outros mais tranquilos.

Melanoma. Não era nada de mais, mas era melhor retirar, disse o doutor. E aí nós voltamos lá de novo, o cara me deu um beliscão com a anestesia e retirou o tecido cancerígeno. Meus pais me deram uma revista da Turma da Mônica, edição na qual o Cebolinha era Dom Pedro I, como prêmio pela minha coragem.

Aquela batalha iniciaria uma rivalidade que se estende há 20 anos. Não é nada tão relevante quanto um Fla-Flu, é mais algo pequeno, mas que às vezes incomoda, como um Botafogo.

Ano passado a Pinta atacou novamente. Após 20 anos juntando os cacos e preparando seu retorno triunfal, ela retorna à mesma cena do crime. Mas agora eu carrego um agravante – sou adulto. E a pior parte de ser adulto é, justamente, marcar médicos.

Quando se tem um plano de saúde, marcar um médico é uma epopéia por assinatura. Você sabe que nos próximos meses viverá o “compromisso médico”.

A primeira consulta, a moça disse que eu precisava tirar a pinta. Sim, disso eu já sabia. Mas é que ela não tirava – e me encaminhou para outro médico.

A segunda consulta não foi com o médico, mas com a estagiária do médico. Não me entenda mal – não tem problema ela ser a estagiária do médico. Contanto que resolvesse o problema. Não resolveu.

Ela viu a Pinta. Analisou bem. Usou duas, três lupas distintas. Colocou uma luz. Tirou uma foto. E com um tom professoral e tenso, disse: É. Precisa tirar mesmo.

Mas ela também não tirava, o que nos levou à terceira consulta. Essa seria com o médico mesmo, e não com a estagiária dele. Na véspera da consulta, uma surpresinha de última hora – a secretária só então lembrou de me cobrar a bagatela de 500 reais pela futura consulta, valor cobrado pelo médico, sem reembolso pelo plano de saúde.

Voltamos à estaca zero. Iniciei tudo de novo com uma nova médica. Tentei antecipar etapas, falei logo com a secretária que tinha essa pinta. tamanho tal. lugar tal. tinha que tirar, eu já sabia, por favor só tirava logo esse negócio de mim eu não te peço mais nad

Quarta consulta. Ela me deixa esperando na recepção por quase duas horas. Quando entro na sala, quase me foi possível ouvir os tambores. A médica iniciava o desfile do reconhecimento da Pinta.

Primeiro a ala das lupas microscópicas. E vai a lupa um. A lupa dois. Gira pra lá, gira pra cá, encontra o grau correto. A lupa três. Depois a ala das lâmpadas acende uma luzinha amarela. Observa bem. O silêncio tácito no consultório. O posicionamento minucioso das amostras grátis de protetor solar. Será que ela vai me oferecer algum? Será que ela vai tirar a Pinta? Será que eu vou conseguir ir na praia com os pontos nesse fim de semana? Em meio à dança do ofício dermatológico, me perco em dúvidas e inseguranças.

Mas ela não estava insegura. Ela disse, com bastante segurança e certeza:

É. Precisa tirar mesmo.

Sim, eu sei.

Mas não posso tirar agora. Você precisa voltar outro dia.

Quinta consulta. A este ponto da história já havia se passado um ano, um misto de má vontade minha de resolver o problema, e da má vontade dos dermatologistas de trabalhar.

Mais duas horas esperando na recepção. E o pior de ter que esperar em recepção é o papo furado das mulheres de meia idade. Meu deus, que coisa desagradável. Eu esperaria por dias em uma jaula, em uma ilha deserta, em um local remoto e primitivo cercado por zumbis e tendo de me alimentar de meus próprios dejetos mortais. Mas não me faça aguardar junto de uma senhora que comenta o programa da Ana Maria Braga falando que certa vez estava em Sorocaba e vira uma adolescente de 16 anos brincando com uma boneca e pensou “Meu Deus! A inocência ainda existe! Eu quero viver aqui, quero ser enterrada neste parque, onde a pureza da educação é tamanha que esta adolescente brinca com uma boneca Barbie. Lá no Rio de Janeiro, o boneco de uma adolescente de 16 anos é outro – é de verdade!”.

E nesse tipo de conversa mole esticam-se horas e horas de um dia útil que se perde para que o mau hábito dos médicos possa se perpetuar tanto quanto suas salas de espera.

Entro na sala. Já vou tirando a camisa, falando minha senhora por favor vá depressa que eu ainda preciso almoçar. Ela manda deitar de bruços na maca enquanto prepara a anestesia. O beliscão de 20 anos atrás me reencontra. A pinta sofrega seus últimos instantes de revolta. Seus dias estão contados.

Com um bisturi sinto a dermatologista retirar um quadrado do meu tecido epitelial como se fosse um bife. Melhor: como se fosse o queijo prato de cima que ficou grudado no queijo prato de baixo e precisamos utilizar uma faca para tirar um cubo um pouco mais grosso do que gostaríamos.

Enquanto ela costura minhas costas abro meu coração e conto que estou inseguro pois acabei de ser demitido e não terei mais plano de saúde na hora de retirar os pontos. Ela diz que retira sem cobrar, mas iria viajar, tirar férias, ir a congressos, e só poderia dali a um mês, então era melhor eu ter um plano B.

Costura feita, me levanto vitorioso, certo de que venci mais uma vez a Pinta, como Sherlock Holmes sempre vence o criminoso, e como Arsène Lupin sempre vence Herlock Sholmes. Até que ela me avisa – veja, esse é o pedaço que eu tirei, mande para a biópsia e volte aqui para eu ver o resultado – se tiver plano. Aí, dependendo, marcamos a retirada da Pinta.

Meu Deus você só pode estar de brincadeira comigo esse texto já tá grande já se foram cinco consultas, cinco situações de explicar pro chefe que preciso tirar algumas horas por conta de uma Pinta, cinco pesquisadas no google maps de como diabos eu vou pra essa porra desse consultório, cinco dias tomados pela burocracia dessa galera que lucra a cada vez que eu preciso acionar a porra do plano de saúde aaaaaaaaaaaaaa

Por sorte nesta época eu me encontrava com uma médica, e no 10º dia combinei com ela de trazer seu bisturi descartável do consultório para retirar meus pontos. Devo admitir que, das consultas, essa foi a mais agradável. Penso que se o SUS e os consultórios particulares oferecessem mais taças de vinho e cigarros de maconha aos pacientes, a vida do profissional de saúde teria um pouco mais de tranquilidade.

A Pinta já maquinava seus próximos passos. Eu conseguia vê-la esfregando as mãos com um sorriso maléfico, jogando o queixo para o alto como se fosse o doutor Fred Nicácio em meio a uma discussão.

Agora eu estava sem plano de saúde, mas tinha uma biópsia em mãos. A próxima médica não teria para onde fugir. Eu ia jogar a biópsia na cara dela. Ela agora saberia em milímetros exatos o tamanho. A profundidade. O pantone. O tipo. A taxa de rejeição do público. O tweet discriminatório que a Pinta fez em 2011 sobre outras pintas. A médica saberia até mesmo as Odds daquela Pinta virar o jogo pra cima de mim em todas a casas de apostas.

Minha amiga médica encaminhara o pedido para o departamento de dermatologia do SUS. Procedimento marcado – três meses de espera. Mas não tinha problema, pois era verão e eu não estava com tanta pressa assim de ter pontos em minhas costas por 15 dias.

Na realidade, os três meses passaram muito mais rápidos do que as 3 horas e meia que eu precisei esperar na recepção daquela clínica. Dessa vez sem televisão, sem ar condicionado, sem um rádio sequer para distrair a mente. Vocês sabem o que acontece quando se passa mais de 3 horas no mais profundo tédio? Sim, isso mesmo – acaba a bateria do iPhone. E sem bateria o tédio se torna ainda mais lodoso, entra pelos buracos dos seus sapatos e suas pernas são lentamente consumidas pela areia movediça do tédio, o calor te torna uma ameba amorfa que sua, as costas que sem mais nem menos estão absolutamente empapadas de suor, as crianças que correm de um lado pro outro, as mulheres de meia idade com as conversas mais desinteressantes da face da Terra, “Ah, eu não como fora de casa, nunca”, “Nem em festa?” “Não, não como. Também não bebo. Nunca bebi álcool na vida”.

A consulta estava marcada para 11h. Eu cheguei às 10h30, como mandava o papel. A porta absolutamente fechada: a médica nem estava lá. Os pacientes se avolumando. Já não havia aonde sentar. Levantei-me pra procurar um lanche e a única barraquinha não aceitava pix, só dinheiro, eu não tinha dinheiro. Voltei com fome, sem lanche, e agora sem lugar.

A última hora de espera foi em pé, encostado na parede. Fechei os olhos e quase chego a cochilar. Quando de repente a porta se abre, e num espaço de 10 minutos a médica atende cinco pessoas. Eu sou o sexto. Tudo bem? Tudo. É uma Pinta, né? Isso, nas costas. Deixa eu ver.

Sem dança, sem pena, no mesmo instante em que ela bate o olho na Pinta, ela diz sem hesitar: eu não tiro isso.

Vou te encaminhar pra outro médico.


Às vezes eu me sinto um e-mail de uma demanda que ninguém quer assumir.


A Pinta hoje está feliz: tirou foto com boné da patrocinadora, o social media fez uma provocação pra mim no Twitter. Mas nossa disputa continua, até que o último verme coma minhas vísceras de uma vez por todas.

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