Hoje meus avós se mudaram. Aliás, eles estão se mudando desde ontem. Mas vamos começar do começo.
Quando eu nasci, meus avós já moravam há 10 anos naquela casa. Meu avô foi sapateiro por muitos anos, até virar pedreiro, daqueles jeitosos e limpinhos que fazem os serviços bem feitos.
Era uma casa graciosa, nada que chamasse a atenção, nunca estaria no Pinterest, mas uma casinha perfeitamente agradável e funcional, com um murinho baixo, cacos de vidro no topo do muro para evitar ladrões, um telhadinho pra proteger o fusca, e um corredor grande e largo.
Após o corredor, um degrauzinho te fazia adentrar a casa, logo na sala, na mesa onde almoçamos em todas as datas comemorativas. À esquerda, a cozinha, que por ser criança nunca pude mexer muito, exceto pra sentar na mesinha do canto e tomar um café com creme crack.
Eu passava algumas tardes lá, adorava quando meu avô ia me buscar na escola com o fusquinha laranja dele, sabia que ia passar a tarde brincando. O corredor externo da casa dava numa ruazinha agradável, com umas árvores, várias casinhas, muitas crianças brincando e empinando pipa.
Em cada casinha daquela rua minha avó tinha uma amiga e meu avô, um conhecido. Minha avó levava a cadeira de praia dela, sentava no portão, e todas as velhinhas se sentavam também. Tinha uma negra, uma que sempre usava vestido rosa e tinha o cabelo bem preto, minha avó, com os cabelos totalmente grisalhos, e mais uma ou outra. Tinha Dona Geralda, que era mulher do Seu Geraldo, vizinhos de porta. Casa dele era amarela, os portões pretos, baixinhos e vazados, por onde podíamos ver o bonito quintal com um limoeiro. Do outro lado, morava um menino chamado Kennedy, cujos pais nunca vi pois não tinham intimidade conosco.
As principais lembranças que eu tenho de lá são eu brincando com o Kennedy, que era um menino negro, meu único amigo negro em toda a infância.
Numa esquina tinha o Butiquim do Zé, que meu avô adorava, era a segunda casa dele, passava lá de manhã e de novo à tarde, à noite só às vezes. Nada além de umas cervejinhas, batendo papo, ouvindo rádio, não era de ficar bêbado.
Na outra esquina, uma padaria em que minha avó me levava pra comprar pão, biscoito e guaraná no café da tarde. As tardes eram super agradáveis, lembro do sol batendo lateralmente, a cortina dando um marrom à sala, as janelas de madeira, meu avô fechando a grande porta cinza de madeira para tirar um cochilo no quarto. Eu assistindo Simpsons ou Chaves no SBT.
Bem, isso foi na infância.
Depois as coisas pioraram. A Penha, um dos bairros mais bucólicos do subúrbio, foi aos poucos sendo tomado pela criminalidade. A Vila Cruzeiro, que é uma das favelas do Complexo do Alemão, se expandia, o tráfico ia junto, e passou a se conviver lado a lado com o crime.
Quando eu ainda morava ali com meus pais, lembro de em várias noites ter de ir abaixado para o quarto dos fundos, que nos protegia dos tiroteios tão próximos. Uma vez tivemos a ousadia de olhar na janela. A janela dava para um cruzamento, no qual 4 viaturas encurralavam um carro preto com as portas abertas.
Um pouquinho acima na rua em que morávamos iria ficar pra sempre marcado o local da morte do Tim Lopes, um jornalista cruelmente assassinado no início dos anos 2000. O que o Tim Lopes tinha ido cobrir ali era o Baile Funk. Repórter investigativo, tinha ido conferir as acusações de tráfico e prostituição infantil. As meninas da região que não participassem da prostituição sofriam represálias.
Tim Lopes foi sequestrado ao ser visto com uma câmera. Em relato da série “22 Crimes Que Chocaram o Brasil”:
“Elias Maluco estava esperando pelo que ele via como o “troféu” capturado. Antes de colocá-lo no porta-malas de um Fiat Palio roubado, os traficantes atiraram em Lopes em seus pés ou pernas e amarraram as mãos atrás das costas.
Os traficantes amarraram Lopes a uma árvore. Ratinho estava convencido de que este era o mesmo “Tim Lopes” que fez o relato da televisão em 2001, resultando em sua prisão e interferência nos lucros das drogas da gangue. Por isso, ele insistiu que Lopes tinha que morrer. Lopes implorou por sua vida, mas lhe disseram que ele morreria. Um dos traficantes que estava presente, Frei, disse mais tarde aos detetives que havia mais de vinte pessoas presentes no local, nove dos quais participaram do assassinato de Lopes.
Em um “ritual macabro” de violência, eles queimaram os olhos de Lopes com um cigarro e Elias Maluco, usando uma espada de samurai ou uma espada do tipo “Ninja-to”, cortou as mãos, braços e pernas de Lopes enquanto ele ainda estava vivo. Os outros traficantes, incluindo André Capeta e Ratinho, também participaram da tortura. A polícia foi posteriormente informada de que havia sangue em vários dos traficantes que estavam reunidos ao redor. Lopes foi colocado dentro de vários pneus, coberto de combustível diesel e incendiado. Esse processo, que se tornou institucionalizado entre traficantes nas favelas mais violentas do Rio na época, era chamado de micro-ondas”
Com tudo isso acontecendo na minha rua, eu de repente não podia mais brincar nela. O Parque Ari Barroso, uma grande área verde da região que era destino certo aos domingos ensolarados, foi completamente abandonado. O mato começou a crescer tanto que já não era possível entrar nele, e a polícia começou a usar o local como cemitério de viaturas.



Nós saímos de lá, fomos morar em vários apartamentos, cada vez um pouco mais distante, mas meus avós permaneceram, era a vida deles, os vizinhos deles, a casa deles. Foram ficando. Quando se sabia ter tiroteiro, procuravam ficar em casa. Exceto meu avô, que gostava de ir ao Zé saber das fofocas, quem morreu, que corpo foi visto, etc. Às vezes ele dava de cara no bar fechado, porque o Zé fechava com o tiroteio.
O Kennedy sumiu. Nunca mais vi.
As vizinhas foram morrendo pouco a pouco, esse é o problema de se estar velho, os amigos morrem. E aí foram chegando outras pessoas, mais jovens, sempre com uma penca de filhos, gente mal educada, uma vibe diferente, menos família. Seu Geraldo morreu de câncer. O Zé morreu, o bar fechou, as chaves do bar ficaram com meu avô, que passou um mês indo nele para limpar, organizar, cuidar. Até que a herdeira do Zé proibiu, fechou as portas, e nunca mais se fez nada lá no espaço abandonado.
As árvores da rua foram crescendo em excesso e não havia quem as podasse, foi preciso derrubá-las todas. Exceto uma, na esquina, em que uma vez vi um corpo morto estirado sob a sombra.
Mas estava tudo controlado, a tudo se habitua. Às vezes tinham tiroteios e ninguém saía de casa. Mas havia luz, havia água, tv por assinatura e telefone. Às vezes a gente desacreditava um pouco da humanidade, como quando bandidos roubaram os canários do meu avô, ou quando meu avô passou o dia inteiro pintando o muro só pra picharem à noite. Ou quando num natal fomos visitá-los e bandidos apontaram metralhadoras para nosso carro, achando que éramos alguma ameaça. Minha mãe passando mal, meu pai abaixa os vidros, e minha avó precisa se identificar com uma arma no rosto. Eu devia ter uns 10 anos, por aí.
Em 2010, quando o BOPE tentou tomar o poder do Complexo do Alemão para instalar as UPPs, naquela cobertura da Globo que chocou o Brasil com traficantes correndo morro acima, tudo ficou paralisado. Era na mesma rua, no mesmo lugar, só que um pouquinho acima. Nessa época eu já morava um pouco longe, em Ramos, mas também não pude sair de casa por 7 dias – ninguém podia. Blindados subiam minha rua, helicópteros cobriam sobrevoando meu prédio, as ruas eram tomadas por cartuchos de bala, a minha escola fechou. Na casa dos meus avós, pneus em chamas, correria e uma clima de apreensão sob barulhos de tiro.

Mas, te falar? Até aí, tudo bem também.
O negócio começou a ficar ruim mesmo quando chegou o tal do Rennan. Nada contra, eu entendo as complexidades de uma personalidade como essa, se devia ou não ser preso, não sei. Com certeza tem gente pior por ali. Mas o Baile da Penha, popularizado pelo Rennan da Penha, esse sim tornou o ambiente insuportável.
Não é que fosse um local onde houvesse o baile. Ele simplesmente acontecia ao longo da rua, tomando tudo o que estivesse ao redor. E todo o cenário que Tim Lopes queria detalhar ao mundo passou a acontecer na porta dos meus avós e dos vizinhos deles. Prostituição, droga, armas, assassinatos, polícia invadindo, funk no último volume de sexta-feira, 17h, às 15h do domingo, ininterruptamente. Impossível dormir, impossível ter tranquilidade. Num sábado às 10h poderia ter alguém drogado mijando na sua porta enquanto carrega uma AK-47. Sempre lotado.
E por mais que haja o papo progressista de que o baile é cultural, que é liberação de corpos, que é diversão do pobre, ok, tudo isso é válido de ser analisado, porém não se pode fechar os olhos para todas as subversões que seguem acontecendo a olhos vistos: prostituição sim, crianças prostituídas, drogas liberadas, armamento, homicídios, um clima permanente de tensão.
![A Chave da Gaiola: O Funk Como a Arte Libertadora de Corpos na Favela [PODCAST] - RioOnWatch](https://rioonwatch.org.br/wp-content/uploads/2021/02/Baile-da-Gaiola-visto-de-cima-captura-de-tela-do-clipe-Hoje-eu-Vou-parar-na-Gaiola-de-Rennan-da-Penha..png)
Para visitá-los em datas festivas, como Dia das Mães e Páscoa, éramos analisados de cima a baixo, inclusive por uma infinidade de traficantes portando armas do tamanho da minha perna. Era sempre mais ou menos parecido: bermuda tactel, camisa de time, de Flamengo à Internazionale, cavanhaque, luzes, gel no cabelo e uma arma gigante.
Motos por todos os lados, motos andando o tempo todo, pessoas completamente embriagadas andando de moto em ruas sem sinalização e sem placa. Tudo é mão dupla, tudo depende de você se apertar. Todas as calçadas tomadas por barracas, lixo e dejetos, todas as pessoas andando na rua, pinos de cocaína vazios, e a vida acontecendo em meio ao baile, pois a vida não pode parar 3 dias, então barbearias, açougues, mercearias, lojas de capas de celular, tudo numa confusão enlameada e ao som de fode fode fode fode fode senta senta senta senta.
Bem, aí já começou realmente a ficar chato. O tráfico dominou tudo, e não só o tráfico, mas o Baile dominou tudo, e não havia mais vida possível ali.
Meu irmão pegou um pouco, eu peguei um pouco, meu pai uma quantia, as poupanças dos meus avós outra, e compramos um apartamento para meus avós uns 3 quarteirões mais “pra baixo”. De fundos e de frente para um rio, não tem como o baile avançar por ali. Quer dizer – sempre tem, mas vamos torcer pra que não.
Meu avô doou todas as plantas dele, inclusive uma árvore da felicidade que cuidava orgulhosamente há 30 anos. Encaixotamos tudo, doamos mais um monte de coisa, minha avó encontrou coisas novinhas que ela guardava há 30 anos para dar de presente de casamento, mas esqueceu e nunca deu. Um kit de facas, pantufas, brinquedos de madeira. O “barracão”, um quartinho nos fundos onde meu avô guardava suas ferramentas de pedreiro, seu amolador de facas, uma máquina antiga para costura de sapatos. Um cheiro curioso de cimento que dialoga com tantas memórias. Tudo foi doado, ou jogado fora, ou colocado em grandes sacos pretos sem destino.
Tudo marcado, mudança sexta-feira às 7h.
Mas não seria fácil sair dali. Como que simbolicamente, para homenagear a saída dos meus avós, naquela madrugada aconteceria uma das maiores operações policiais na Vila Cruzeiro, com 400 policiais buscando bandidos do Brasil inteiro que se refugiaram ali. 70 mandantes de facções em Manaus estavam se refugiando lá. Devíamos ter ligado na Globo antes de ir fazer a mudança, pois a cobertura ao vivo ia avisar que não seria possível.
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O caminhão da mudança foi proibido de entrar. Meus avós ficaram em casa, em meio a caixas, esperando o tempo passar. Meu avô reinstalou o gás, religou a geladeira, reinstalaram a televisão, e passaram um dia à espera. Será que mudamos de tarde? Será que fica pra amanhã?
Ficou. E hoje, às 7h, estávamos lá novamente, carregando caixas, geladeira, fogão, sofás, poltronas. Me despedindo daquelas paredes, daquele corredor, conhecer pedaços daquela casa que eu nunca tinha visto por trás daqueles móveis que há 36 anos não se moviam. Nos despedindo de um passado que não volta, de uma tenra infância que agora só existe na memória, de um Rio de Janeiro que piorou como uma fruta que apodrece e acumula moscas.
Um dia inteiro com meus avós de 86 anos remontando móveis e arrumando armários. Suas roupinhas delicadas em sacos sendo recolocadas em gavetas. Meu avô nitidamente exausto não tendo aonde sentar. Mas lá pro fim do dia já estava tudo nos conformes, minha avó quis cozinhar a janta e meu avô foi no bar com meu pai tomar “um goró”. Chegando lá, meu pai não quis acompanhá-lo no Mel com Cachaça, no que meu avô começou a sacaneá-lo, e dois homens com metralhadoras semi-automáticas no braço riam das piadas do meu avô na mesa ao lado. Passaram na farmácia pra comprar um dorflex, meu pai comentou que o ar condicionado da farmácia era tão gostoso que nem dava vontade de sair, e outros dois homens com rifles comentavam que também estavam curtindo o ar.
Vivendo no Rio, é muito difícil ter esperança. Aqui não foi preciso PT, a esquerda nunca chegou ao poder. Aqui o poder é disseminado, uma espécie de feudalismo, cada região tem sua facção, os moradores ignoram a realidade pra suportar o cotidiano, o projeto de segurança pública é retroalimentar uma guerra de polícia contra ladrão, sustentada pelos milicianos, que são um pouco dos dois, que dão armas pra ladrão e informações pra polícia, que exploram moradores e criam um império de crime.
Antigamente a favela ia subindo, morros lindos iam sendo tomados de casas no tijolo, que caíam desastrosamente nos dias de chuva; mas agora as favelas descem, tomam as ruas, há um pouco de favela em todo lugar, e os locais um pouquinho melhores são grandes gaiolas com segurança 24h.
Haveria solução se alguém quisesse solucionar. Mas é como a poluição que torna as lindas praias impróprias pra banho – não há interesse em fazer que melhore. Os milicianos expandem seu poder territorial e político, e por mais que o Paes apareça na Globo sambando, a gente sabe que até ele é refém de policias que usam calça jeans, camisa polo, relógios de ouro e municiam as guerras entre jovens negros e policiais corruptos, ambos votando no Bolsonaro.
Ao menos, agora meus avós tem uma casa nova. Que vivam até os 106 anos lá, ou mais, se for possível.
E se da Penha não podemos ver o Cristo, há quem valorize seus apartamentos dizendo que ainda podemos ver a Igreja da Penha. Meu avô já subiu a escadaria (de 365 andares) de joelho pra pagar promessa. Mas isso é outra história.
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