“O Sentido de um Fim”, de Julian Barnes

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Eu estive lendo “O Sentido de Um Fim”, livro de Julian Barnes que trata basicamente sobre como construímos versões parciais das coisas que vivemos para nos confortar de nossos erros e limitações. No livro, um amigo do protagonista se suicida, e tudo parece ok, até que 40 anos depois um diário faz ele revisitar todas as histórias que ele havia passado verniz por cima.

É sempre muito mais fácil delegar a culpa de uma briga a outra pessoa, principalmente quando se é adolescente. Se alguém não te amou, é culpa dela. Se alguém te tratou mal, é maldade dela.

Todas as vezes que eu tive alguma frustração, principalmente amorosa, eu fiz questão de escrever um texto distorcendo tudo à minha maneira, pra deixar claro a integridade da culpa ao outro.

“A principal característica do remorso é que nada pode ser feito contra ele: que o tempo passou para desculpas e reparações. Mas e se eu estiver errado? E se, de algum modo, o remorso puder refluir para o passado, ser transformado em simples culpa, a pessoa pedir desculpas e então ser perdoada? E se você puder provar que não era o cara mau que ela achou que você era, e ela estiver disposta a aceitar sua prova?

Ou talvez meu motivo viesse de uma direção inteiramente oposta, e não fosse sobre o passado e, sim, sobre o futuro.”

Eu já estava há alguns dias querendo revisitar uns momentos da minha vida com o olhar sincero que o distanciamento temporal me deu. Não pelo passado, mas pelo futuro. Eu não sei, ainda, o sentido disso.

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  1. Méier não

Eu tive uma grande paixão aos 17 anos, M., uma menina que estudava no mesmo colégio que eu. Ela me seguia no twitter antes de eu conhecê-la, e tivemos interesse mútuo um pelo outro, até que minhas incapacidades cognitivas minaram completamente a relação em poucas semanas.

Ela tinha um hábito muito esquisito: o de sentar no colo do porteiro. Havia no colégio umas intimidades muito problemáticas entre alunas e funcionários, que iam desde professores sendo demitidos por transar com alunas, até alunas que sentavam no colo do porteiro com naturalidade.

Esse hábito fez M. ser tomada como “meio vagabunda” por meus amigxs, e isso me deixou bastante ressabiado, ainda que minha paixão fosse inquebrantável. Nós jogávamos pembolim e meu coração pulsava ao estar no mesmo time que ela. Meu rosto ficava vermelhíssimo ao fazer um gol. O dia parecia mais doce quando ela ficava na escola de tarde para estudar. Eu sabia – ela estava ficando para estudarmos juntos.

Mas essa era uma época em que eu dizia as coisas sem muito filtro, então foi nessa época em que eu interrompi aulas de geografia pra argumentar que mulheres mereciam salários menores por engravidar; foi nessa época que argumentei contra cotas e projetos sociais; e foi nessa época que interrompi M. para fazer o comentário que nunca consegui esquecer.

Meu pai sempre fez troça de quem morava em Jacarépaguá e se dizia morador da “Grande Barra”. Esse é um hábito do carioca – por ter bairros nobres muito próximos de bairros pobres, utiliza-se o “Grande X” para tirar onda – Grande Leblon, Grande Tijuca, Grande Barra.

M. morava num bairro próximo ao Méier, mas fazia questão de dizer-se moradora do Grande Méier. E eu, repetidamente, a interrompi pra dizer: Méier não, você mora no ***.

Talvez na primeira ela relevasse. Na segunda também. Alguns anos depois eu conheci o bairro *** e passou a me doer demais ter sublinhado, pelo menos, três vezes, que ela morava em ***, uma favela, e não no Grande Méier, como ela preferia dizer. Para mim, uma piada, exaustivamente repetida pelo meu pai. Pra ela, uma ofensa de classe.

Eu tenho certeza que esse tipo de comentário, sem o menor filtro, de péssimo teor, ainda que sem maldade, tenham se acumulado e feito ela preferir o A., moleque muito mais feio que eu, que corria incessantemente atrás dela. Mas por anos eu preferi pensar – e dizer – que era porque ela era do tipo que sentava no colo do porteiro e, portanto, não era boa o suficiente pra mim.

  1. Campinas

Uma thread famosa do meu blog foi quando viajei para Campinas para participar de uma festa de 15 anos. Às vezes me pego pensando que as meninas que me contrataram devem se arrepender amargamente daquilo.

Eu tinha ido para Campinas em janeiro e feito um encontro de leitoras que reuniu quase 100 pessoas. Em julho, fui convidado para voltar, dessa vez bancado por duas adolescentes, que queriam “me dar” de presente pra uma festa de 15 anos.

Acontece que, na primeira ida, eu conheci A. e fiquei perdidamente apaixonado. Então, por mais que as meninas estivessem me dando 700 reais + a passagem + a hospedagem para ir à festa, eu encarei aquilo como uma visita com tudo pago à A.

Consegui que A. fosse convidada para a festa, que aconteceria num sábado à noite. Eu tinha separado uma roupa pra ir, mas chegando lá meus pais inventaram que a roupa não era elegante o suficiente, e compraram umas peças horrorosas na C&A da cidade, no intuito de “me fazer parecer chique” mas, é claro, “sem gastar muito”, que me deixaram praticamente irreconhecível. Minha calça skinny fora trocada por uma de veludo preto, meu allstar por um sapato 5x maior que meu pé.

Aquela foi a noite mais fria que já vivi – beirava 4ºC quando cheguei na festa. As aniversariantes estavam na porta recebendo as pessoas. Eu fui recebido e fiquei estático, paradinho ao lado delas, na porta, sem saber o que fazer. Elas disseram pra eu andar pela festa. Aquela foi a última vez que elas me viram. Eu andei, de um lado a outro, e me sentei, feito um cachorro molhado. Só conseguia esperar que A. chegasse.

Ela chegou e estava estonteante. Andamos juntos pela pista de dança por alguns minutos, até que encontramos uma salinha, um “backstage”, onde tinham dois sofás e uma luz bem baixinha. Ninguém ia pra lá. Ficamos eu, A., Luiz, o menino por quem A. me trocaria no mês seguinte, a namorada de Luiz, e a menina que me contratou, que foi uma fofa do início ao fim.

Eu queria ter tido o desprendimento de não ter vergonha, de beber umas Blue Lagoon e dançar solto com as aniversariantes. Mas eu tinha 15 anos, era burro e estava apaixonado. As pessoas diziam “vai pra pista de dança” e eu dizia “nhé, quero não”. Eu queria beijar A., mas ela não queria me beijar pois estava com vergonha de ser vista dando amassos com a atração da festa.

  1. Eu nem gosto tanto assim de Rihanna

Quando entrei na faculdade, consegui entender melhor algumas semióticas e o sentido por trás de alguns comentários. Achei que isso me credenciava a alguém melhor, mas demorei pra perceber que os desafios também ficavam mais difíceis.

Saí com uma menina em 2017, a R., que era toda letrada nos discursos progressistas e academicistas. Militante 24/7, não consumia nada que não fosse socialmente responsável. Eu era fissurado nela e queria demais conquistá-la, dei meu melhor e tentei ser o mais agradável possível. Saímos 4 vezes e em cada uma ela encontrou alguma nuance problemática em algo que eu dizia, no que o date inteiro se tornou uma troca de acusações.

A mais problemática foi quando ela depreendeu que eu era racista pelo fato de não gostar de Rihanna. Foi um diálogo meio “Amo Rihanna”, “Eu não curto muito não”, “Como não? Além de super talentosa ela é linda, perfeita”, “Eu nem acho ela muito bonita, sabia?”, “Como não?!?!?! O rosto dela é perfeito!”, “Mas ela tem uma testa meio grande, né? E mó narigão”.

Certamente foi o acúmulo de coisas ditas, e não aquela apenas, mas ela me dispensou e saiu falando mal de mim na internet. Eu não perdi tempo – fiz um texto chamando-a de louca, a pior coisa que eu poderia dizer naquele momento.

A intensidade da vontade que eu tinha de conquistá-la foi diametralmente oposta à raiva que eu gerei nela por meus discursos pouco aptos. Naquela época, dizer as coisas “sem querer” e “sem maldade” já não eram bem aceitos, visse, Rodolffo do BBB21?


Eu já quebrei a cara uma infinidade de vezes por falar bosta e a maioria delas me dóem. Fui um adolescente incrivelmente sensível e irritadiço, e me acostumei – fiz até sucesso por – falar coisas absurdas. Algumas eu passo um lápis em cima e ignoro; outras, que talvez ninguém nem saiba, me perturbam 10 anos depois.

Em 2019 duas pessoas que eu tinha como melhores amigos pararam de falar comigo por eu ser “imaturo” e “falar muita bosta”. Perderam a paciência, assim como R., e como outras meninas com quem eu vacilei.

“Quando você começa a esquecer coisas – não estou falando de Alzheimer, mas da consequência previsível do envelhecimento – há maneiras diferentes de reagir. Você pode parar tudo e ficar tentando forçar sua memória a fornecer o nome daquele conhecido, flor, estação, astronauta… Ou você admite o fracasso e toma medidas práticas como consultar a internet. Ou pode simplesmente deixar pra lá – esquecer de lembrar – e então às vezes você percebe que o fato esquecido volta à superfície uma hora ou um dia depois, normalmente durante aquelas noites em claro que a idade impõe.

Mas aprendemos outra coisa também: que o cérebro não pode ser tipificado. Quando você acha que tudo é uma questão lógica, seu cérebro, sua memória, podem surpreender você. Como se estivessem dizendo: não imagine que você pode confiar em algum processo confortável de declínio gradual – a vida é muito mais complicada que isso.”

JULIAN BARNES | Rocco

Tem um episódio de Friends em que o Chandler pede desculpas a uma namorada da adolescência por tê-la chamado de gorda. Tem também um episódio de HIMYM em que a Lilly obriga o Barney a pedir desculpas a todas as mulheres que ele enganou. A reação das mulheres é sempre de irritar-se ainda mais com o cara. Isso porque pedir desculpas, muito tempo depois, é algo bizarramente egoísta – você só quer se sentir melhor consigo mesmo. Você reaviva uma dor na pessoa só pra anestesiar a sua.

Eu até poderia pedir desculpas a elxs, um a um. Pra alguns eu já pedi, mas não fez muita diferença, “eu acredito que você possa ter melhorado sim, e espero com muita força que tenha e nunca mais repita esses erros, mas isso não anula o mal que você fez”, disse uma. Outra apenas disse: Ainda que você tenha melhorado, não tenho o menor interesse em perdoar você.

Por mais que eu tente ser irrepreensível, às vezes eu faço umas bostas. E as cicatrizes vão acumulando, e não importa o que eu faça, sempre que passar no bairro *** ou lembrar da Rihanna, vou sentir uma leve dorzinha. Eu gosto de pensar que isso me fará melhor, mas na real acho que só me faz uma pessoa cheia de remorsos, que pensa duas vezes antes de falar as coisas, que vai perdendo dia a dia um pouco da espontaneidade.

No fim, para ser agradável aos outros, a gente percebe que se tornou meio desagradável pra si mesmo. Os tempos não são fáceis para as frases espontâneas.

2 comentários em ““O Sentido de um Fim”, de Julian Barnes”

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