Éric Rohmer e Praia dos Ossos: As delícias e dissabores dos anos 80

Houve um breve período de tempo nessa quarentena que estive bastante relaxado. Saíra da minha antiga casa, onde um constante mau humor e clima febril me exasperava, e me mudei para a casa dos meus pais, onde reencontrei um conforto e um padrão de limpeza que me relaxou as têmporas.

Em outubro, o dito período, o Fluminense também se manteve invicto por 8 partidas, e a MUBI, essa graciosa surpresa, entrou em minha vida.

A MUBI é uma plataforma de streaming focada em filmes cults. Todos os dias um novo filme, todos os meses novos temas e uma curadoria impressionante. Logo que assinei, encontrei a seleção de filmes “Comédias e Provérbios” do Eric Rhomer, que ainda está disponível no catálogo.

AS “COMÉDIAS E PROVÉRBIOS” DE ERIC ROHMER

2020 foi o centenário de Eric Rohmer, diretor francês de grande sucesso principalmente entre as décadas de 60 e 80.

Desde sua carreira como crítico de cinema, entre os anos 50 e 60, Rohmer já era o ‘diferentão’. Além de ser o mais velho da turma de críticos franceses que fundou a Nouvelle Vague, era também bem mais conservador que seus colegas, tanto em visões políticas quanto na sua postura diante dos filmes.

Lançados entre 1981 e 1987, os seis filmes que compõem “Comédias e Provérbios” são filmes acessíveis e agradáveis, pequenos excertos das vidas de pessoas jovens e modernas da França àquela época.

Assisti-los em série é uma experiência deliciosa de viagem à Paris dos anos 80, com cores lindas e pequenas situações dos relacionamentos – numa época banhada a Sartre e Simone de Beauvoir – sendo torcidos maravilhosamente à maneira Nouvelle Vague.

Os filmes acompanham relacionamentos que se desenrolam sem celular, sem internet, com telefones praticamente inutilizados e uma dinâmica social totalmente diferente numa época em que é insuportavelmente chato ficar em casa. Sem distrações, as pessoas são impelidas a estarem na rua. Com apaixonados que precisam escrever cartas e meninas que fazem amigas no ônibus ou em cafés, pois onde mais? Pessoas que vão ler nas praças para ver se conhecem alguém, ou que vão a cafés para ver se encontram amigos na rua. É uma Paris jovem, cultural e bem humorada, em dias ensolarados da juventude parisiense.

“A Mulher do Aviador” (1981) – Um jovem de 18 anos resolve passar o dia seguindo o ex de sua namorada, de 26 anos. A menina só anda meio de saco cheio das pessoas, mas o protagonista acha que é uma recaída pelo ex. 

É deliciosa a transposição da stalkeada cotidiana que hoje damos no Instagram e no Facebook, numa época sem tecnologia, que o menino precisa se desdobrar para, em situações leves, encontrar mais detalhes sobre aquele que pode ser um rival. Como visitá-la às 7h da manhã para deixar um bilhete embaixo da porta, ou fazer amizade com uma estranha só para usar sua câmera.

“Pauline na Praia” (1983), é a maravilhosa história de duas primas que vão a uma casa de praia e logo as relações se tornam um jogo de interesses. Pauline, de 15 anos, conhece esse menino bonito aí da foto e tenta viver uma paixãozinha de verão. Mas ele é irmão de um cara escroto, que está seduzindo a prima mais velha de Pauline. Para completar, um terceiro cara, que é apaixonado pela prima, fica fazendo o famoso leva e trás entre os personagens, para queimar o cara escroto e conquistar a prima. Mas a prima tenta empurrá-lo para Pauline, pois não confia no menino bonito da foto.

Todos esses prazeres e manipulações terminam de um grande imbróglio que, de maneira divertida, mostra a frivolidade das relações em uma casa de veraneio.


Nessa cena, a protagonista de O Raio Verde explica por que é vegetariana, e toda a mesa, repleta de bobões, falam que ela não ingere energia, por isso é cansada, etc, etc, e ela, coitada, tão fofa e paciente tenta se explicar.

“O Raio Verde” (1986) – Foi o meu favorito, mantendo o tom leve e agradável dos demais, mas agora associado a uma melancolia que acompanha a personagem até o fim. A personagem acaba de assinar suas férias no trabalho quando uma amiga, que iria acompanhá-la em uma viagem, cancela tudo. Ela então sente a agonia de ter tirado as férias e não ter companhia para fazer nada.

Tentando conhecer pessoas, ela logo se desanima pela superficialidade das relações. Então começa a se sentir culpada. Seria ela uma chata, uma sem graça? Por que não se sente bem com ninguém? 

Um filme extremamente íntimo, onde conhecemos uma menina agradável, vegetariana, sensível, tímida, tentando ser feliz mas justamente por tentar tanto, não conseguindo. Ainda apresenta uma série de coisinhas fofas e criativas, como o “raio verde”, que nasce da premissa de “o último raio de sol antes de anoitecer é verde”. Quem a acompanhará para assistir ao pôr do sol?

NA PARIS DOS TRÓPICOS A VIDA TAMBÉM ERA EFERVESCENTE

Curiosamente, na mesma época de Comédias e Provérbios, eu também estive viciado no podcast Praia dos Ossos, da Rádio Novelo. São 8 episódios que contam a história de Ângela Diniz, uma mulher chamativa que teve toda a sua vida marcada pelas reações das pessoas à sua vontade de liberdade.

Ângela foi assassinada em 30 de dezembro de 1976 com 4 tiros no rosto pelo seu namorado, Doca Street, playboy ciumento. Quando ele foi a julgamento, a população o abraçou como a um ídolo, dizendo que Ângela merecia, que ela estava pedindo. O machismo em seu estado cristalino. O absurdo foi tamanho que deu início a um dos primeiros movimentos feministas do Brasil, que fez um barulho histórico. Pouco tempo depois, Doca foi a julgamento novamente – dessa vez, completamente defenestrado pela opinião pública.

Quem foi Ângela e o que mudou entre um julgamento e outro, é o que o Praia dos Ossos conta em uma narrativa envolvente e viciante, ambientada em Minas e Rio de Janeiro, nas décadas de 70-80.

***

O mais gostoso, tanto de Comédias e Provérbios, quanto de Praia dos Ossos, é enxergar aquele mundo dos anos 80, que parece tão distante, mas ao mesmo tempo tão semelhante! Hoje temos celulares e internet, mas os problemas são os mesmos, apenas dispostos em outras formas e mídias. Nosso FOMO, nosso machismo e nosso país que se recusa a evoluir, em cores mais bonitas e com um ar de jovialidade e esperança que parecemos ter perdido.

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

%d blogueiros gostam disto: