Eu estava saindo do mercado, bolsa cheia de verduras, buço suando embaixo da máscara, coçando a pelugem da parte inferir do lábio com a boca.
Passei por umas floriculturas, olhei, olhei, escolho planta como se fosse roupa, olho um milhão de vezes, nunca gosto de nada, raramento vale o investimento, até que ploft, surge uma que me conquista o coração e compro imediatamente, mesmo que não pudesse.
Mas naquele dia nada. Então saí das floriculturas e meu chinelo arrebentou.
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A última vez que meu chinelo tinha arrebentado eu estava com a morena, em Botafogo, ali na São Clemente. Não precisei dar mais de 5 passos para encontrar uma farmácia vendendo chinelos, mas nenhum do meu tamanho: 40-41.
Comprei um chinelo preto tamanho 44 só pra andar que nem um paspalho atrapalhado nos meses seguintes.
Até que uns 5 ou 6 meses depois, em uma viagem pra Praia do Sono, saindo da areia, ouço um amigo comentando: ih, Gui, acho que peguei teu chinelo por engano!
É que ambos os chinelos eram idênticos. Mas, ele disse, o dele era alguns números abaixo do tamanho do pé dele: 40-41. Ele calçava 44.
Trocamos. E assim o romancista do universo encerrou o primeiro ciclo do caos, em situação que por sua vez me lembrou uma outra ida à praia, com esse mesmo colega, em Ilha Grande.
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Caras, perdi meu óculos.
O único motorista da viagem perdeu o óculos no meio da viagem. Pra chegar àquele lugar, fomos de carro até uma cidade, e lá pegamos um barco. Eu dizia: deve estar no carro. Mas ele desesperou-se do mesmo jeito.
À noite, com o menino sem conseguir enxergar nada, a doença do Comunismo tomou nossos corações de assalto. Para além de igualdade, fomos executores da equidade visual plena e indefectível.
O menino tinha 5 de miopia. Eu tenho 3 de miopia. Um amigo nosso tinha 1 de miopia. Em um arremedo gostoso e revolucionário, o mais cego ficou com meu óculos, eu fiquei com o óculos redondinho de tortuga do menos cego, que por sua vez ficou sem óculos nenhum.
Todo mundo enxergou mais ou menos aquela noite, mas não houve nenhum prejuízo que não fosse pior do que o olho fininho e vermelho.
Alguns dias depois, quando voltamos ao carro, encontramos o óculos dele lá, fechando assim o segundo ciclo do caos.
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De volta à dura realidade presente, eu andava pelas ruas do Catete com apenas um pé de chinelo, o outro enegrecido pelo contato direto com o chão.
Em uma mão, a ecobag carregando minhas verduras. Na outra, o chinelo arrebentado, para que ninguém achasse que eu simplesmente dei a doida e resolvi pisar no chão.
Voltando pra casa, lembrei dolorosamente que precisava passar no mercado dos produtos de limpeza. Porque a pessoa que é meio psicopata tem disso: um mercado pra comprar verduras orgânicas, um mercado pra comprar carne barata, um mercado pra comprar doces, e o quarto só pra produtos de limpeza.
E como vocês sabem eu ando esquisito com limpeza.
Pois entrei então no mercado, descalço, chinelo numa mão, verduras na outra, e comecei: Mr Músculo, Veja, água sanitária, sapólio, desinfetante, esponja…
As pessoas me olhavam esquisito, mas eu poderia julgá-las também: mercado cheio desse jeito no auge de uma pandemia? Vão pra casa, seus insensatos!
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Com o peso de ser um Homem limpo nas costas (a pior parte de fazer mercado é a volta), meus olhos interpretavam as ruas em busca de uma farmácia, uma banca, uma Havaianas, qualquer coisa que pudesse me vender um chinelo.
Nada. Ninguém gosta de chinelo no Catete. Exceto a última banca, já quase chegando em casa, que de uma prateleira que um dia esteve cheia, restava apenas um chinelo.
E era ele. Era ele! O chinelo perfeito pra mim. Verde. Com o escudo do Fluminense. O último da prateleira, esperando por mim. Olhei ao redor procurando quem compartilhasse daquele regozijo. Ninguém. Era uma alegria só minha.
Peguei-o. Arrastei-me sujo, com o mundo nas costas, o buço suado, o elástico da máscara doendo minha orelha. Amigo, eu quero esse chinelo, por favor.
Ih! Peraí…
Tamanho: 44
O terceiro ciclo do caos foi aberto e desde então o brasileiro não teve um dia de paz sequer.