Eu tinha 7 anos quando cheguei em São Paulo. Meu pai havia sido transferido para trabalhar em Osasco e toda a nossa família se mudou para Jundiaí. Era uma mudança brusca, mas as condições de vida iam melhorar muito – o Rio de Janeiro não vivia seus melhores dias.
Passamos 3 meses em um hotel chamado Le Partenon, num apartamento com cozinha americana e dois quartos. Era a vida dos sonhos. Eu não estava matriculado ainda e passava o dia vendo TV Globinho e jogando o meu CD-Rom com 120 jogos num notebook alugado. Existe um cheiro específico de comida que me lembra imediatamente o Le Partenon.
Passado esse tempo, fui morar no omeletão. Era um conjunto de 3 prédios amarelo-xixi com uma faixa azul no meio.
Aquilo que era qualidade de vida. Se no Rio de Janeiro eu não podia sequer ir ao corredor do prédio sozinho, pois corria riscos de sequestro, assalto e assassinato, lá eu podia passar o dia inteiro jogando bola e correndo feito um maluco. Foi a primeira vez na vida em que eu joguei bola. No meu segundo dia, meus pais ainda ajeitavam a mudança, desci para brincar com um menino chamado Matheus e ele me ensinou o que era escanteio.
No bloco 3 morava um jogador do Palmeiras. Eu não sabia nada de futebol, nunca soube quem era. Mas isso não me impediu de, quando o carro dele passava, correr atrás junto com os outros meninos. Uma vez, na ânsia de ganhar um autógrafo, joguei meu tênis nele.
Apesar disso, quase ninguém jogava bola lá. Era bicicleta, polícia-e-ladrão, RPG e basquete. O esporte majoritário dali era com certeza o basquete. Outro que eu nunca tinha jogado também. Dos mais velhos aos molecotes, todo mundo jogava basquete.
As minhas inaptidões pro esporte eram tantas que pedi pros meus pais me matricularem numa aula de basquete. Eles o fizeram, e todas as terças e quintas depois da aula eu treinava.
NO RIO ENTÃO EU JÁ ERA SAFADO
Voltando pro Rio, já com 9 anos, esse treino me foi de algum benefício. O esporte carioca sempre foi o futebol, mas nas raras ocasiões em que me sobrava a oportunidade de jogar basquete, eu tinha breves vestígios de protagonismo.
Metade do ato de jogar basquete é confiança. A outra metade é técnica. Por isso, eu era um ótimo meio-jogador de basquete. Foi por conta disso que entrei no time de basquete da escola.
Quando eu tinha 11, colei em dois malucos incríveis chamados Eddy e Rapha, que tinham 13 anos. Nós éramos os raros ouvintes de róque na escola e isso aproximava as pessoas. No pacote “roquero premium” vinha também tocar violão, ter cabelo grande e jogar basquete.
É curioso pensar hoje que fazer esporte no colégio é algo muito mais social do que esportivo no final das contas. Você é obrigado a estar próximo de pessoas com as quais você dificilmente interagiria. Eu não gostava de pessoas em geral, mas movido pela amizade com os dois, me senti à vontade para entrar no time.
Meu apelido era Naruto, pois num dos primeiros dias de treino eu usei uma camisa do Naruto. Eu nem gostava de Naruto, não sei pra que a comprei. Tinha ido em um evento com o meu irmão e vi tantas coisas sendo vendidas que precisei comprar alguma coisa.
COPA SESC, OU: O PRENÚNCIO DA LENDA
A Copa SESC certamente foi o auge da minha carreira. As rodadas aconteciam em sábados alternados, de 9h ao 12h. Às vezes o jogo era no SESC perto da minha casa, às vezes na casa do adversário.
Nas semifinais, enfrentamos o SESC de Belford Roxo. Não sabíamos o que esperar. Estávamos na quadra se aquecendo antes do jogo. As paredes eram azul bebê e o sol batia alternado pelas janelas. O time era eu, Eddy, Luã e Deco. Talvez tivesse mais alguém que não lembro.
Eis que entram os meninos. Com o uniforme todo vermelho, era de dar pena. Assustadoramente magros, pequenos, frágeis, todos negros, carequinhas, pessoas nitidamente de vida mais complicada, talvez de algum projeto social, e a gente lá, uns branco privilegiado estudante de colégio particular.
O sentimento de pena foi meio generalizado. Aí o jogo começou e a tática deles ficou clara desde o início: vamo se jogar no chão e cavar falta. Não podíamos nem encostar, sequer chegar perto, que os meninos se estatelavam no chão como fruta madura. Falta. Lance livre.
Consigo lembrar perfeitamente de chegar perto de um deles e o osso do braço me acertar como uma agulha. Doeu horrores, mas ele caiu, falta pra eles, 2 pontos.
Era isso e um ou outro lance de três que dava tons dramáticos à partida. A gente jogava, errava bastante, mas era jogo franco, corrido. A cada falta eles quebravam nosso ritmo e se aproximavam no placar.
Essa era a quadra, mas não conheço essas pessoas. Processos tratem com meu advogado.
O DRAMÁTICO ÚLTIMO LANCE
O jogo estava pau-a-pau, como num filme americano. Nós, de uniforme branco, exaustos, pingando de suor, o ginásio razoavelmente cheio, o sol de 11h30 batendo lateralmente na quadra. Os meninos de uniforme vermelho, frágeis, mas com muita vontade, muito sangue no olho, fazendo das tripas coração pra conseguir o próximo ponto.
Faltando 15 segundos pra acabar a partida, eles estavam na frente por dois pontos. 65 a 67. Eles desistiram de jogar bola. Só se jogam, chutam a bola pra longe, se defendem. Lateral pra gente. Nosso técnico, o Dudu, pede tempo.
“Galera, só temos mais uma chance. Um lance. É só isso. O campeonato depende desse lance, mas vai dar tudo certo, eu confio em vocês. Eddy, toca pro Naruto. Naruto, você vai tocar imediatamente pro Luã, que vai tar subindo pela esquerda. Luã, o chute é seu. Tem que ser de três. Vamos lá, pessoal! Confio em vocês!”
Apito. 14 segundos. Movimentação. 13 segundos. 12 segundos. 11 segundos. O Eddy balança os braços me procurando livre, eu tentando fugir da marcação. 10 segundos. 9 segundos. Corro pro meio. O Eddy toca. Olho pro Luã. 8 segundos. 7 segundos. Toco pro Luã. Domina. Quica duas vezes. 6 segundos. 5 segundos. Chuta.
XUÁAAAAAAAAAAA
Faltando 4 segundos, todo o time de vermelho desaba no chão, derrotado. O jogo nem termina. Após a cesta de 3 pontos do Luã, o juiz apita, eles caem no choro, desesperados. Nós não conseguimos comemorar. O Dudu pede para nos contermos em respeito. Cada um do nosso time senta ao lado de um do time deles e conversa, anima, fala que vai ter outra chance. O público entra na quadra, fica animando os meninos. Eles não respondem, não conseguem – choram copiosamente.
Saíram tristes. E nós, classificados. Na semana seguinte viríamos a ser campeões da Copa SESC, e eu conquistaria a única medalha que já ganhei na vida.
SÓ MAIS UMA EXTRA SCENE
Pouco tempo depois da Copa SESC eu abandonei o basquete. É que agora eu era uma estrela da internet, e além disso eu tinha brigado feio com alguns cuzões do time. O Eddy parou de jogar quando começou a namorar e o Rapha saiu da escola no ensino médio, então não tinha mais amigos lá.
Só nas Olimpíadas do colégio que eu joguei de novo, pois o Eddy participou e o time eram meus colegas de turma. Toda a escola se mobilizava para aquilo, professores, coordenadores, irmãs e, principalmente, todos os alunos lotavam o ginásio com cartazes, faixas, uniformes e cantos.
No meu colégio, todos os dias tocava alguma música católica no sistema de som. Era o “toque da manhã”, dando início aos trabalhos. Nas Olimpíadas daquele ano, a minha turma, em um ato de pós-ironia premeditada, adaptou uma música para a nossa torcida.
Por isso, quando o time de basquete entrou em campo, toda a torcida começou a cantar: Quando Jesus passaaaaar… Quando Jesus passaaaaaaar… Quando Jesus passaaaaaaaaar, eu quero estar, no meu lugar! tá tá tá tá tá aaaaaaaaaaaa quando Jesus passáaaaaaaaa
Eu estava no terceiro ano e íamos jogar contra o segundo ano. O segundo ano era cheio de gente metidinha, ninguém ia com a cara deles – hoje, parando pra ver, vejo que eles aproveitaram melhor o ensino médio do que a minha turma -, então nos unimos com a torcida do primeiro ano.
Eu comecei no banco. Não tínhamos um técnico, quem decidia o time eram os jogadores, então obviamente o que definiu a escalação era o peso da argumentação de cada um. O Pedro, que treinava basquete no Fluminense, era a estrela do time, quase um profissional. O Paulo, representante de turma, jogava mal demais, mas precisava muito aparecer, ser visto, etc, então era o mais fominha. Daí tinha o Eddy e mais alguns que entravam às vezes junto comigo.
Próximo ao fim da partida, todo mundo já estava nervoso. O segundo ano estava ganhando. Um dos meninos estava morto de cansaço e eu entrei definitivamente no time. A tática do time agora era: toca pro Pedro.
Eu não. Eu queria me divertir também. Eu chutava bem, vira e mexe fazia boas cestas de longe. Peguei a bola no meio de campo. Toca! Toca! Toca! TOCA CARALHO! TOCA PRO PEDRO, VAI, VAI!
Chutei. Do meio de campo. “PORRA, VAI TOMAR NO CU!!! TOCA ESSA BO…”
XUÁAAAAA
Cesta de três pontos. Daquelas cinematográficas, que a rede sobe e desce. Virei pra minha torcida fazendo hangloose. Consegui enxergar todos eles pulando de euforia.
Perdemos aquele jogo. Só pra terminar esse texto assim: com uma derrota.
Leia Mais: Sobre minha profícua carreira de ciclista