Após a frequente repetição de determinados arquétipos de suicídio em produções japonesas, me peguei pesquisando sobre como o suicídio é visto na cultura oriental. Anotei algumas coisas e compartilho com vocês, adicionando o conteúdo que me levou a pesquisá-lo:
1. HARAKIRI
Se o suicídio é comumente relacionado à tristeza e depressão, no Japão feudal existia uma forma diferente de encará-lo. Samurais que, por alguma razão, decidissem dar um fim às suas vidas, poderiam fazê-lo sem perder a honra ou entristecer familiares.
Funcionava assim: o Samurai precisava ir a uma guilda e pedir permissão ao líder para fazer o Harakiri. Ele contava sua história de glórias e batalhas, e explicava exatamente por que decidia dar um fim à vida. Às vezes por alguma doença, dívidas, problemas familiares, profunda tristeza, ou simplesmente por acreditar já ter cumprido seu papel. Caso o pedido fosse aceito, dava-se início ao ritual.
O homem precisava tomar um longo banho e trajar as vestes da guilda. Depois, tomava uma garrafa de saquê. Nesse momento, ele escrevia um poema no qual contivesse a sabedoria que conquistara em vida.
Por incrível que pareça, os samurais eram também grandes poetas! Muitos são até hoje considerados bastiões da poesia japonesa, e o estilo Haikai (poesias em três versos) vem diretamente deles.
Aqueles que eram filiados à guilda sentavam-se perfilados ao morimbundo. O líder da guilda proferia algumas palavras. Era desembanhada a espada. Então, o samurai dizia suas últimas palavras, e enfiava a espada no próprio ventre, arrastando-a por toda a extensão da barriga. Quando ele começasse a desmaiar, um outro samurai seria encarregado de decapitá-lo.
UM CONTEÚDO: HARAKIRI, 1962
Em Harakiri (1962), um samurai solicita Harakiri à guilda pois está à beira da falência. Contudo, sua história era de tantas glórias, que a guilda decide recusá-lo e, ao invés disso, lhe oferece um emprego.
Estimulado por essa história, um jovem de 20 e poucos anos, desempregado, cuja mulher grávida sofria muito e estava prestes a morrer, decide pedir Harakiri na intenção de também ser contratado pela guilda. Acontece que, com ele, não funciona, e ele é obrigado a realmente se matar. Essa história gera grande revolta e um ímpeto por vingança.
2. AUTOIMOLAÇÃO
Ele está cansado. Após uma vida inteira de dedicação espiritual, autoconhecimento e meditação, um monge percebe sinceramente que chegou o momento de encerrar sua vida. Ele não está tomado por tristeza, pelo contrário: encontra-se mais feliz do que nunca. Viveu o que era para viver e está pronto para fazer a passagem.
Em alguns pergaminhos, escreve palavras sagradas. Tampa seus sentidos com eles: nos olhos, nos ouvidos e na boca. Senta-se em cima de um amontoado de madeira e acende uma vela, que logo toma todo o seu corpo em um ritual de passagem.
Diversos foram os casos de pessoas que utilizaram a prática como protesto. Em 1963, a autoimolação de um monge vietnamita deflagrou protestos civis no Vietnam. Em 2010, o tunisiano Mohamed Bouazizi fez o mesmo, e inspirou a Revolução de Jasmim, a partir da qual muitas pessoas praticaram a autoimolação em meio à Primavera Árabe.
Pintura Hindu de 1650: uma viúva queima-se com o cadáver do marido.
Em chinês, a palavra significa “esquecer o corpo”. Muito além de um simples protesto, a autoimolação é uma prática milenar associada ao budismo. Em um dos capítulos do Lótus Sutra, um dos livros mais antigos do budismo, conta-se que Bodhisattva Sarvarupasamdarsan, o “Rei da Medicina”, bebeu óleos perfumados, envolveu seu corpo num pano embebido em óleo e queimou-se com incensos por 1200 anos. Assim, alcançou a iluminação e reencarnou.
CONTEÚDO MANEIRO: “PRIMAVERA, VERÃO, OUTONO, INVERNO, PRIMAVERA”, KIM KI DUKI
“Primavera, Verão, Outono, Inverno, Primavera” (2004), do Kim-Ki Duki, é tranquilamente o meu filme favorito. Cada estação do ano conta um período na vida de um monge que vive isolado em uma cabana de palafita no meio da selva. Ele tem consigo uma criança, a quem ensina budismo desde cedo. Cheio de simbolismos, as estações também acompanham a maturação tempestuosa do menino, sua autodescoberta, e os rituais budistas que regem a vida de ambos. É do “Outono” a cena que descrevi ali em cima.
3. SHINJYUU
Você consegue conceber uma cultura em que a culpa cristã não existe? Em que as pessoas não nascem com um pecado inicial, em que ninguém morreu em nome delas, e que elas não precisam passar a vida se martirizando por uma limpeza espiritual? Uma cultura em que, ao invés disso, encara-se a vida como um estágio meramente provisório, e a morte como uma transição natural para a espiritualidade maior?
Nessa cultura, importantes entidades religiosas se suicidaram e obtiveram assim o ápice de sua realização espiritual. Os grandes ícones históricos encontravam no suicídio uma maneira de encerrar a vida com honra. E os grandes literários colocavam o suicídio como a solução para as intempéries românticas.
A vontade de Osamu Dazai era se suicidar com alguma amante se afogando num rio. Isso se chama Shinjü, quando um casal acredita que seu amor não pode ser pleno neste mundo, de forma que somente após a morte eles poderão alcançar a felicidade.
No Japão existe um modelo literário chamado Michiyuki: uma jornada poética em que dois amantes evocam os momentos mais felizes de suas vidas e suas tentativas de se amarem. No entanto, as convenções sociais impedem esse amor de acontecer, e a história caminha para o Shinju.
No início do século XX, Osamu Dazai foi um dos maiores expoentes de um movimento literário chamado Watakushi Shosetsu: romances escritos em primeira pessoa, como se fossem uma autobiografia. A utilização de um eu-lírico biográfico era uma forma de expor o lado negro da sociedade e ao mesmo tempo ser um método de escrita menos constrangido.
O movimento serviu especialmente para trazer à tona questões identitárias. “Voragem”, de Junichiro Tanizaki, é um baita livro sobre uma paixão lésbica. “Futon”, de Katai Tayama, são confissões de um pedófilo. E os livros do Osamu Dazai são relatos de um depressivo. Essa forma de literatura foi a forma que os japoneses encontraram de lançar uma luz sobre as pautas identitárias e a psique humana sem censuras.
Dazai e sua esposa, Tomie, se suicidaram pulando em um rio na véspera do seu aniversário de 39 anos.
UM CONTEÚDO: O DECLÍNIO DE UM HOMEM, OSAMU DAZAI
“O Declínio de Um Homem” é o maior sucesso do Dazai e uma leitura bastante curiosa e agradável. Com um toque de Dostoievski, o Dazai escreve desse jeito autobiográfico e conta em míseros detalhes a história de sua depressão. Ele declara precisamente o primeiro momento em que percebeu que tinha depressão. Fala sem reservas sobre suas tentativas de suicídio, sobre como se afundou no alcoolismo e na pornografia, e como desperdiçou uma vida que poderia ser profícua por nunca conseguir se sentir feliz.
Se estiver procurando por algo mais leve, “Bungou Stray Dogs” é um anime de casos policiais cujos personagens são escritores literários bem humorados. O Dazai é o personagem principal e tenta se suicidar quase todos os episódios. Chega a ser chocante o deboche e a ironia com que elestratam o suicídio. Agatha Christie, Dostoievski, Edgar Allan Poe, Mark Twain, entre outros, são personagens de episódios.
4. UBASUTE
Talvez você se lembre de um episódio da Família Dinossauro no qual o Dino explica que, quando a vovó ficar velha demais, ela será jogada do topo de uma montanha. Meu pai sempre brincou que faria isso com minha avó e esse ritual ficou estabelecido na minha memória pra sempre.
Acontece que essa ideia não nasceu na Família Dinossauro. A Ubasute (“Abandonando um parente”) é uma prática milenar do senicídio no Japão. Nela, um parente mais jovem carrega um familiar idoso para o topo de uma montanha remota e o abandona lá para a morte – seja pulando do monte, seja morrendo de fome.
A prática pertence ao folclore japonês, mas não existem registros de ter sido algo recorrente em nenhuma época.
UM CONTEÚDO: A BALADA DE NARAYAMA, 1958
A Balada de Narayama (1958) é um filme in-crí-vel. Ele pertence a um movimento cinematográfico que buscava transpor as práticas do teatro japonês Kabuki para as telas. Por isso, os cenários e as atuações são incrivelmente teatralizados. As cores são vivas, as atuações exageradas e as maquiagens estilizadas e densas, fazendo os rostos parecerem aquelas máscaras japonesas que tu já deve ter visto por aí.
O filme foi exibido na 19ª Edição do Festival de Veneza e foi considerado uma masterpiece. Em 1983, uma outra versão da história foi feita, essa mais realista, menos teatralizada. Venceu o Festival de Cannes e foi adicionado à lista Os Melhores Filmes da História da Criterion. Eu, pessoalmente, prefiro a de 1958.
O grande lance da história é abordar as diferentes perspectivas do Ubasute. Enquanto uma velhinha de 69 anos aguarda ansiosamente seu aniversário, enxergando como um fim agradável à vida, uma passagem indolor ao próximo estágio do espírito, o idoso da casa vizinha se recusa a seguir a tradição e vira um indigente. Por amar demais a vida, ele recusa pôr um fim a ela: vira um ladrão de comida, execrado por todos da vila, chamado de covarde por sua própria família.
BÔNUS NÃO-NIPÔNICO
5. ROLETA-RUSSA
Um pouco diferente do que falei até aqui, a roleta-russa não é exatamente uma forma de suicídio, mas flerta seriamente com uma morte escolhida. É um jogo de azar. A primeira menção à prática vem no romance “The Fatalist”, de 1840, de Mikhail Lermontov, considerado um dos grandes poetas da literatura russa.
Grigory Alexandrovich Pechorin vocifera que não há “destino” e propõe uma aposta esvaziando cerca de vinte moedas de ouro na mesa. Um tenente sérvio, Vulic, apaixonado por jogos de azar, aceita o desafio e tira aleatoriamente uma das pistolas de sua cintura. Ninguém sabe se a pistola está carregada ou não. Vulic pergunta: “Senhores! Quem pagará 20 moedas de ouro por mim?”, colocando o cano da pistola na testa. Então ele pede a Gregory que jogue uma carta no ar e, quando esta carta toca o chão, ele atira. Nada acontece, porque o golpe falha. Mas quando Vulic prende a pistola novamente e aponta para uma tampa pendurada na janela, um tiro soa e a fumaça enche a sala.
Existem também evidências de que os oficiais russos do século XIX eram absolutamente imorais e suicidas. Fortes teorias de que o jogo surgiu nas trincheiras russas.
UM CONTEÚDO: SUICIDAS, DE RAPHAEL MONTES
Primeiro uma curiosidade mórbida: esta cena de Dragon Ball Z em que Goku chega ao Palácio da Serpente no céu e uma servente lhe oferece um revólver para brincar de roleta-russa foi censurada no Brasil, mas veiculada em vários países.
Agora sim: o livro Suicidas, do Raphael Montes, é o livro mais bizarramente viciante que eu já li na vida. Eu não comia, eu não dormia, eu não tive um segundo de sossego enquanto não terminei de ler esse livro. Engoli em 4 dias as 600 páginas que contam sobre 9 jovens que se reunem em um porão para brincar de roleta-russa.
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3 comentários em “Arquétipos de Suicídio: A Morte Escolhida”