Entendo que tenha todo um lado problemático nessa afirmação, mas eu estou amando a quarentena. Nesses 40 dias, tive apenas dois dias de mau humor. De resto, estou brilhante. Faço minha comida, trabalho sem precisar sair de casa, meu salário e minha família estão protegidos. Moro na minha própria casa, onde posso molhar minhas plantas e tomar chá com torradas.
Disse algumas vezes essa frase e repito de novo: o que vocês chamam de quarentena, eu chamo de férias de verão. Porque era exatamente assim mesmo. Eu passava dois meses in-tei-ri-nhos sem sair de casa. Tão logo acabava o ano letivo, eu agia exatamente assim:
Passo 1: Parar de usar cueca
A quarentena tem o paradoxal sabor da liberdade. Ficar sem cueca é um hábito maravilhoso pois te torna uma pessoa mais livre, desestressada e sem a necessidade de lavar cuecas. No entanto, sua ausência também traz um perigoso e problemático cenário: as gotinhas pós-xixi.
É fato sabido por cientistas e matemáticos que a uretra só relaxa totalmente após o pintinho estar devidamente afofado na cueca. Isso depreende que o resultado imediato de se estar sem cueca é: de duas a três gotas de xixi escorrendo pela perna após a confecção urinária.
Ainda estamos trabalhando nisso.
Passo 2: Virar otaku
Orange, Mob Psycho 100, One Piece, Boku no Hero, Megalobox, Tower of God, Parasyte, Digimon e Dr. Stone. Esses foram os animes que eu assisti nesses 40 dias de quarentena.
As férias de verão sempre foram uma época profícua para meu vício em cultura japonesa. Entre 2007 e 2008, o Guilherme de 12 anos chegou a inclusive pleitear uma vaga de DJ na Rádio Anime House, a rádio de browser do maior site de animes do Brasil. Lembro que, durante um breve intervalo de tempo, cheguei a ter o programa – mas não me permitiam narrar, apenas escolher as músicas. Era incompreensível pra mim a ideia de não quererem dar uma rádio para uma criança.
Nunca me contive apenas com o consumo de anime. Eu lia o mangá, ouvia as músicas, me aprofundava sobre os artistas (a banda da minha vida foi, é e sempre será X Japan), lia livros e via filmes japoneses. Houve duas tentativas SÉRIAS de aprender japonês por aulas online – que na época eram apostilas escritas, visto que no youtube só havia vídeos de até 4 minutos.
Penso com frequência que, se eu pudesse escolher aonde nascer, o único lugar que ficaria à frente do Rio de Janeiro seria o Japão.
CRÍTICAS CURTAS:
– One Piece (2ª Temp): bom demais, esse anime é gostoso demais, vale muito a pena encarar os 930 episódios
– Parasyte: começou bom, se perdeu, terminou ruim
– Mob Psycho 100: INCRÍVEL, o que temos de melhor em matéria de shonen
– Dr. Stone: ficou chatinho, né?
– Orange: bobinho, mas muito bonito
– Boku no Hero: me estressa um pouco os cenários preguiçosos e a infantilidade, mas tem cenas de luta maravilhosas
– Megalobox: uma obra incrível, 13 episódios alucinantes, história clássica e executada com primazia
– Digimon Adventure: a primeira aventura de digimon boa desde o digimon 4 na TV Globinho de 2005. Trouxeram o elenco clássico de volta numa nova história que promete ser mto boa
– Tower of God: feito pra criança retardada, só pode ser. metade da história se desenrola sem por quê e a única característica do protagonista é ser “bonitinho”
Passo 3: Jogo Ragnarok
Ragnarok pra mim funciona como nicotina para pessoas normais. Já houve o tempo do vício pesado, que pegou por influência ainda na tenra infância. E eu não posso dar um mole que ele volta.
Eu comecei lendo o mangá. Queria ter uma coleção de mangá. Já colecionava Negima!, mas meu irmão dizia que era mangá de boiola. Não tinha problema, eu gostava muito. Mas queria um mangá de macho também, aí comprei ragnarok, e no meio das edições tinha páginas coloridas (!!) com informações sobre o jogo. Lembro de um que catalogava os 150 chapéis possíveis no jogo.
Estava absolutamente apaixonado pelo jogo sem nunca tê-lo jogado. Jogar parecia impossível, inviável. Custava 15 reais por mês (!!) e, para tê-lo, era preciso enviar uma carta à LevelUp! solicitando um CD que chegaria entre 15 dias e um mês.
Uma vez, falando com meu irmão, comentei que meu SONHO era jogar e que inclusive pediria 2 meses de jogo de aniversário. Meu pai ouviu a conversa e disse que, po, 15 reais por um SONHO? Beleza, eu pago, sem problema. Até hoje estranho a facilidade com que rompemos aquela barreira.
O jogo chegou e eu só podia jogar depois de meia-noite, que era quando tinha internet. Ia dormir às 20h e meu pai me acordava 00h para que jogasse até as 1h. Meu pai sempre foi muito legal. Isso deve ter acontecido por alguns meses, até que bem nessa época chegou a banda larga.
Aí eu chafurdei no vício. Num dia de XP em dobro, cheguei a passar 17 horas seguidas treinando na Fábrica de Brinquedos. Aquele mapa permeia meus sonhos até hoje. E eu amo isso.
Fiz um grupo de amigos em Aldebaran, o Ban Mido (Ricardo) e a Jessy~* (Jéssica). Eram dois paulistas. Fomos verdadeiros amigos, confidentes, virávamos as noites jogando juntos, sabíamos tudo da vida um do outro. Às 21h desligávamos o jogo, assistíamos GetBackers no Animax, depois Histórias de Fantasmas no Cartoon, e voltávamos às 22h30 para jogar até 00h. Passamos assim uns 6 meses, até que trocamos as primeiras fotos de como éramos offline. É claro que eu e Ricardo nos apaixonamos pela Jéssica. Mas Jéssica só se apaixonou pelo Ricardo, que era um japa cabeludo enquanto eu era um feioso.
Eles se casaram no jogo e sequer me convidaram para a cerimônia. Pouco a pouco fui excluído do grupo, que virou uma dupla. Fico genuinamente curioso pra saber o que aconteceu com aqueles dois.
Eles se foram, o Ragnarok ficou, e vira e mexe volta. Nunca passei mais de 2 anos sem baixá-lo. Larguei o servidor oficial com um Mercenário lvl91. Depois fui ser o Lord Knight mais forte do servidor pirata pbRO. É só rolar mais de uma semana livre e pelo menos um amigo entusiasta pra cair de cabeça comigo.
Inclusive: originsRO, baixem lá e vamos jogar! Meu nick é “pe lanza”
Passo 4: Ler livros
Ok, essa eu preciso admitir que demorou um pouco para eu conseguir. Na real, como a escola é algo extenuante, nas férias de verão meu cérebro simplesmente se recusava a funcionar. Eu me culpava, inclusive, de passar tanto tempo livre, com tantos livros a ler, e não ler nenhum.
Talvez tenha sido no intervalo entre passar no vestibular e começar as aulas (foram 4 meses em 2013) que eu consegui introduzir alguma produtividade na rotina. Hoje é fácil.
Em 40 dias de quarentena, eu já li:
– A Revolução de 1989 – Um livrasso de 500 páginas falando de como aconteceu, tintin por tintin, a queda da URSS. Desde o primeiro estopim, em 1980, quando uma operária foi demitida no interior da Polônia e Lech Walesa criou a primeira união sindical do pós-guerra, até os dias imediatamente após a queda do muro. Uma viagem densa e instrutiva pela Romênia, Polônia, Tchecoslováquia, Hungria, Alemanha, Rússia, Afeganistão, Bulgária e Turquia.
– Angústia – Livro razoável do Graciliano Ramos que faz jus ao nome. Não é nada muito relevante, mas tem uma história intrigante e evolui para uma tentativa bem fiel de se tornar um Crime e Castigo, terminando no auge de uma das piras mais intensas e angustiantes da literatura brasileira.
– Olhai os Lírios do Campo – Livro ma-ra-vi-lho-so do Erico Veríssimo, um clássico must-read que reune tudo o que eu mais amo na literatura brasileira: a simplicidade do campo com a complexidade da psique dos personagens. Veríssimo é com sobras meu autor brasileiro favorito (amo O Tempo e o Vento) e esse livro é como uma pequena pílula, fácil de digerir e com todos os nutrientes necessários.
– A Educação Sentimental – Ano passado entrei, sem querer, numa vibe de ler romances de formação – aquela literatura típica do século XVIII que acompanha a vida de personagens aristocratas entre seus 13, 14 anos, até o fim de suas vidas. Esse foi mais um deles, mas com certeza o mais chato de todos, pois que escrito pelo Flaubert, aquele cara do chatíssimo Madame Bovary. “Não é como se o Flaubert tivesse mais criatividade do que qualquer um que se encontre na rua”, diz o Proust, “mas sua capacidade de mostrar como eram fúteis e vazias as relações na burguesia francesa … nhé nhé nhé” é isso, basicamente.
– As Aventuras do Bom Soldado Svejk – Um Dom Quixote da Tchecoeslováquia, mostra as aventuras e trapalhadas de um soldado super bem humorado no meio da segunda guerra mundial. Os tchecos – como aprendi no 1989 – são conhecidos por seu humor ácido, e esse livro não passa despercebido. É tido como um dos maiores clássicos da literatura Tcheca e inclusive é citado como tal no 1989. Triste é que o autor morreu antes do previsto, deixando uma obra de 650 páginas interminada.
– Microfísica do Poder – Esse mood de férias me deixou com uma angustiante vontade de voltar a estudar. Então peguei meu Foucault, já adiantando leituras do meu provável mestrado, para desafiar um pouco o cérebro. Foucault é sempre difícil de ler e franceses escrevem desnecessariamente embolado, mas é um livro que te faz entender a sociedade por uma ótica historiográfica que nunca mais te permitirá dormir tranquilo.
Passo 5: Tento escrever um livro
Todo mundo ouviu o bla bla bla de que o Shakespeare escreveu Rei Lear durante uma quarentena. Não é algo difícil de se imaginar – você tem tempo livre, quer torná-lo produtivo, vamos escrever!
Só que não é assim. Desde os 13 anos que eu tento escrever um livro. É mais difícil do que parece. Já tentei de todas as formas. Já fui num surto de inspiração, só escrevendo sem saber pra onde ia dar. Chegou na página 50 mirabolante, sem pé nem cabeça. Já fui com tudo calculado, cada mísero detalhe. Mas aí faltou sentimento e profundidade às personagens.
Dessa vez dei uma ousada. Tive um sonho. Ia começar a escrevê-lo, como faço sempre, pra registro pessoal. Mas me diverti escrevendo e me empolguei. Foram rapidamente 20 páginas do word. Pela centésima vez, decidi que vou escrever um livro.
Mas foi só chegar perto do clímax que perdi a vontade.
Pra se escrever um livro, cê não precisa de tempo. Cê precisa passar da parte que só os verdadeiros escritores passam – aquela em que o surto de inspiração transforma-se pouco-a-pouco numa labuta desgastante.
Na teoria, parece simples. É por isso que todo mundo que já ouviu o elogio “nossa, você escreve bem” está há pelo menos 10 anos dizendo “estou escrevendo um livro”. Mas, na prática, todo mundo parou quando o surto criativo passou e ficou mais fácil, simplesmente, decidir por não fazê-lo.
***
Menina! Escrevi um monte!
É tempo livre demais nessa quarentena. Mas, como mostrei, estou preenchendo-o com bastante coisa.
E vamos de mais 40 dias!
Yahoooooo
(Por favor! Stop coronavirus! Parem de morrer!)