Quem habituado está à Gestão de Badvibes pode imaginar como acordei. Sempre que vou pedir uber pra minha casa, o destino sugerido pelo app é a casa dEla. Percebam a sutileza do cavalo: sonhei comigo pedindo um uber pra casa dEla e o carro não chegava nunca.
Entregue a choramingos e condolências, levantei às 8h e fui me vestir. Estava me sentindo especialmente apto a vestir preto. Fechei a porta, botei os fones de ouvido (Copeland – Erase) e comecei a me vestir com toda a dramaticidade de uma solidão matutina. Acendi o beck, refleti virado pro espelho. Minha mãe, toda estabanada, entra no quarto.
– Ô GUILHERME tu vai querer DIPINDURA esse quadro aqui na tua parede?
– MÃE você não vê que estou TRISTE?
“Vô não, bãe. Guarda ali que depois eu vejo isso”
***
9h. Aonde será que dei errado pra estar embaixo de um sol de 40ºC todo vestido de preto e ouvindo Fresno – Sono Profundo?
O ônibus estava cheio e suado. Uma voz de choro. “Claro, claro, senta aqui. Anda, piloto!” E então, uma menina deitou nos dois assentos preferenciais do ônibus. “Você aguenta até chegar na Barra?”. Aguento, aguento. Era isso: tinha uma menina, no máximo 25 anos, em trabalho de parto.
O que pode ser pior do que o brasileiro solícito? Eu tenho uma frase que espero deixar para a eternidade: a proatividade é o câncer de toda iniciativa. Levamos um desses à presidência e ainda não concebemos suas mazelas.
Uma mulher, muito, muito espaçosa – perceba a palavra cuidadosamente escolhida -, decidiu ficar ao lado da menina abanando-a. Ela não chegou a perceber, contudo, que isso travava o caminho e fazia com que todos demorassem muito mais a se locomover no ônibus. Então nada andava, pois as pessoas demoravam a superar aquela intransponível bunda no meio do caminho.
E a outra, que DECIDIU que a menina tinha de beber água? Pegou uma garrafinha da bolsa e argumentou com a menina que ela devia beber água como se estivesse advogando pela liberdade de um ex-presidente sindicalista. A menina, coitada, “eu tô bem, eu tô bem” com uma voz de choro que avisava que ela não estava bem.
Nada mais a contar dessa história. Ela segurou as parturiências e espantou as solicitudes. Desceu no hospital com as próprias pernas.
***
Eu tinha uma reunião às 10h. Contudo, um parêntesis: fui contratado para esta empresa junto a mais 3 pessoas e uma chefe. A moça estava montando a primeira equipe de Marketing da empresa. Na minha primeira semana, a chefe pediu demissão. A redatora também. Duas semanas seguintes, a terceira menina pediu demissão. A que sobrou passou o mês inteiro de março sem ir trabalhar. “Machuquei o pé, não posso andar”. De forma que, em meu primeiro mês, eu me tornei o Marketing da empresa.
Na Barra da Tijuca, você tem sempre duas opções: sofrer ou sofrer. É assim, você pode pegar o trajeto mais curto, mas isso envolve ônibus cheios, calor e sofrimento. Isto é, descer em um lugar sem uma árvore sequer, do lado de um esgoto a céu aberto, e esperar por 30 minutos um ônibus lotado. Ou você pode passar 40 minutos em engarrafamentos, esperar 20 minutos a mais e pegar um ônibus com ar condicionado.
Me dei ao luxo de testar a segunda opção, pois o esgoto fedia demais, tamanho o calor que fazia. Na estação, uma menina ficou me olhando. Podia ser que pensasse “todo de preto neste calor; doente mental” ou “besa-me, viene, besa-me mucho!”. De todo modo, quem de passagem me visse, notaria que estava assim:
***
Cheguei no escritório e o ar condicionado estava quebrado. Tomar no cu, né? Parecia um grande vestiário masculino após o futebol. Tenebroso. Insalubre. Dois tiozinhos estavam tentando consertá-lo e pensei na desgraça que deve ser trabalhar com manutenção de ar condicionado. Seu escritório está sempre com o ar quebrado!
“E teu Fluzão, ein?”, me recebeu um camarada. Ih é! Ainda tem isso. Fluminense perdeu o Fla-Flu e foi eliminado do Carioca. Tempos frustrantes para se estar vivo.
Decidi almoçar sozinho. A Barra, você pode supor, não possui um restaurante à quilo pequenininho, da tia Josefa, para você comer comida caseira. A Barra possui Shoppings. Então fui ao shopping. Queria almoçar sozinho, atualizar o podcast e comprar um meião, pois tenho feito gols demais na pelada para jogar de meias baixas.
Chega mensagem dEla. “Estou ficando sério com o Fulano, acho melhor a gente parar de se falar até você estar menos afim de mim”.
***
Não tive lá muita cabeça para executar minhas tarefas pelo resto do dia. Um amigo me mandou um beat de R&B e pediu para eu escrever uma música por cima. Eram tantas sofrências em minha mente que em pouco tempo eu já tinha toda a letra, que ficou de uma qualidade bastante diferenciada. Em breve ela há de ser gravada.
Se o ar condicionado ainda estava quebrado, um problema maior apareceu no horizonte. Foi a maior chuva do Rio de Janeiro nos últimos 20 anos.
Vinte minutos de chuva foram o suficiente para, chegando na principal via expressa do Rio de Janeiro, a Linha Amarela, o motorista do ônibus parar o carro e dizer em voz alta “vamos demorar aqui”.
Chovia torrencialmente e mal dava para enxergar qualquer coisa pelas janelas. Grandes bolsões de água tomaram completamente as ruas, e os carros estavam impossibilitados de passar. Além disso, os túneis foram fechados e as estradas bloqueadas. Passei mais de uma hora conversando com uma mina no zip zap. Professora de filosofia e religiosa, tudo ao mesmo tempo, eu me dobrava entre achá-la interessante e meio esquisita all at once.
A bateria do celular acabou e por alguns instantes vislumbrei a possibilidade de ficar incomodado. Pedi educadamente para o motorista ver se podia carregá-lo, e ele encaixou meu celular em uma USB do painel. Meia hora depois, uma loirinha com cara de rica pediu o mesmo, e ele tirou o meu para colocar o iPhone dela. Ok, ao menos ganhei 15%.
Mas não os utilizei. Já estava há 2 horas no ônibus quando comecei a ler meu livro. Em “Os Irmãos Karamázov”, Mítia estava sendo duramente interrogado após se tornar o principal suspeito de assassinar o próprio pai. Não era a parte mais empolgante da história, mas eu precisava mesmo de um estímulo para ultrapassá-la.
“Alguém aí tem biscoito ou bala pra me vender?”, gritou uma velha na frente do ônibus. Ninguém respondeu. Quando batiam mais ou menos 3 horas e meia de espera, a chuva deu uma trégua. “Vamos descer!” alguém gritou no fundo. “Abre aí, piloto!”, e a porta foi aberta. Neste momento, o pensamento de multidão e a pressa anularam completamente o raciocínio lógico daqueles passageiros, e umas 10 pessoas decidiram descer no meio de uma estrada, 22h da noite, em meio a um temporal.
Achei-os completamente loucos, para não dizer idiotas. Eu não arredava o pé dali por nada. Mesmo que a fome apertasse, e ela apertava, eu não me molharia por uma vã vontade de negar a desgraça eminente daquela noite. Sem contar que o brasileiro em meio ao desespero é o maior perigo que alguém poderia encarar. No ônibus, ao menos, estava seguro.
Eu estava reagindo incrivelmente bem, dadas as circunstâncias. Estava sem pressa alguma, sem aflição, resignado com meu destino. Uma parte tímida até sentia que eu merecia aquilo, que era um castigo necessário para a ascese. Eu cometi tantos erros e passei por tantas coisas. Talvez um castigo caísse bem. Pensamento esquisito, né?
Completadas 4h30 de espera, cansei de ler. O motorista apagar as luzes e desligar o carro foi a deixa para eu tirar uma soneca. Duas meninas já tinham deitado no banco e faziam o mesmo. Um adulto e uma velhinha conversavam no fundo do ônibus. Enrolei-me no casaco e dormi por duas horas, até ser acordado com o ônibus, enfim, se mexendo.
1h da manhã, no meio da estrada, encontramos aqueles 10 passageiros que decidiram ir andando. Eles imploraram pra voltar ao ônibus. Roberto, o motorista, os sacaneou: “desceram só pra se molhar, ein!”. “É, não foi uma boa ideia, não”.
Chegando no Méier, a chuva voltou a cair com força. Peguei um táxi e cheguei em casa 1h30 da manhã, após 7 horas de espera.
Os tempos são duros para os sonhadores.
***
A VIDRAÇA
Chuvas puras, esperadas mulheres,
O rosto que lavais,
De vidro condenado aos sofrimentos,
É o rosto do revoltado;
O outro, fremindo ao fogo da lareira,
É a vidraça do afortunado.
Vos quero bem, ó dúplice mistério,
A um e outro estou ligado;
Dói-me tanto e me sinto bem.