Enxofre

nice
Cena de Somewhere in Palilula (2012)

Eu tava de cabeça baixa lendo um livro.

Ao meu lado tinha um gordinho que me apertava contra a parede do ônibus. O trânsito fluía lento e um cheiro esquisito fez-se presente aos poucos. Lembrei imediatamente de um defumador para limpeza espiritual que tive de passar em casa, mas não era bem aquilo. Não, era outra coisa com cheiro amargo de misticismo. Ainda sem levantar a cabeça, olhando para as páginas do livro, lembrei. Enxofre.

Gente.

Uma linda voz desesperada entrou na cena. “Gente, desculpa”. Levantei a cabeça. Ela usava uma máscara branca sobre a boca e o nariz, um dos magrelíssimos braços se apoiava numa bengala e o outro nas costas curvadas. Balbuciava palavras e pedia ajuda. Estava com câncer, falava de comprar fraldas, uma fralda custa vinte reais, por favor me ajuda, me ajuda, eu imploro. Eu não consigo nem comprar nada pra comer, eu tô com fome, vocês vão me negar? Eu imploro, gente, me ajuda.

E a voz dela era linda. Linda. Era firme, soava bem aos ouvidos. Só que chorada, dolorosa, com uma rouquidão de autocomiseração e desespero de partir o coração. E aquele cheiro de enxofre insuportável misturado com urina, aquela queimação nas narinas. O homem do meu lado levantou e saiu do ônibus, mesmo que não nos mexêssemos há muito tempo.

Pensei, no meu mais íntimo e desgraçado interior, que aquilo não fazia sentido. Parecia pensar “você já vai morrer mesmo, apenas desista”. Não era com desdém, tampouco com raiva, mas um pesar terrível, como se eu me colocasse no lugar dela e pensasse “eu já teria desistido”. Não elaborei esse raciocínio, tampouco essa frase, mas algo parecido flutuou em meu pensamento por um instante e foi o suficiente para me encher de uma sensação horrível, uma tristeza estonteante. E aquele cheiro forte que parecia crescer e piorar, ganhando contornos de podridão, suor e tantos outros odores ruins em um só.

***

Um dos meus primeiros contatos com Nietzsche foi no McDonalds. Após um dos primeiros becks da minha vida, a Aninha jogou o Gaia Ciência em cima da mesa. Folheei e dei de cara com uma ideia. Eu tava chapado, daquelas primeiras ondas que batem com uma força desproporcional. Nunca encontrei aquele textinho de novo. Falava sobre o sentimento de pena. Era mais ou menos o seguinte: você não ajuda um mendigo por que você tem um bom coração, mas por que você é egoísta. A presença dele te faz sentir mal e dar uma esmola é o remédio. Se você quisesse mesmo ajudá-lo havia muitas maneiras. Dar uma esmola, um trocado qualquer, é a mais preguiçosa delas.

Tem um episódio de Friends sobre isso.

Quando você vive no Rio de Janeiro, precisa endurecer um pouco o coração. As pessoas naturalizam e fazem piadas, perdendo a sensibilidade necessária para saber o quão ruim é ter de driblar mendigos o tempo todo. De fato, não dá para ajudar a todos. São muitos. A esmola é um remédio que precisa ser tomado em doses homeopáticas. Se você der muitas em sequência, a sensação de impotência grita. Amanhã eles estarão ali de novo, e de novo. E você está saindo do trabalho, ou correndo para a faculdade, e ele está ali ainda.

A Aninha nunca concordou com o Nietzsche nesse aspecto. Eu concordei de cara.

***

O meu pai, na primeira semana do mês, fazia compras em dobro. Dobro de arroz, de leite, de feijão, de biscoito, de chocolate, de farinha. Separava a metade pra gente e ia pra casa de uma velhinha dar todo o resto. Ele fazia isso todo primeiro domingo do mês por todos os anos em que um salário caiu em sua conta. No natal, quando ele ganhava cestas da empresa, fazia uma cesta para a família da moça também. Minha mãe ia com ele, mas não saía muito do carro. Eu e meu irmão nunca fomos. Só uma vez, por que meu pai queria que a gente “encarasse algumas realidades”. A casa era escura, atravancada, fedia um pouco e tinha um caminho d’água atravessando um dos quartos.

Era esgoto.

Eu só lembro do rosto de umas três crianças me olhando, e da mulher, que nem o nome eu lembro, agradecendo incessantemente.

***

Gente, vocês não vão me ajudar? Por favor, por favor. Só um pouco.

A voz dela era linda, parecia de dubladora. Se ela pudesse cantar! Será que a vida já a tinha feito feliz? Um vestido longo rosa cobria todo o corpo, exceto os braços secos e cheios de veias, e ouvindo aquela voz eu tentava adivinhar aquele rosto em momentos de alegria.

Por poucos instantes pensei muitas coisas sem tomar atitude. Eu já teria desistido. Tristeza. Mas esmola é egoísmo. Ela já vai morrer mesmo. Alguns trocados não vão mudar isso.

15527_939652689388536_743721108910699518_nCara, o que que eu tô pensando?

Foi aqui que o pensamento racional me trouxe?

Foi nisso que eu me tornei?

Essa mulher pode – e vai – morrer a qualquer momento.

E eu tô negando uma ajuda?

Eu tinha cinco reais na carteira. Dei pra ela. Ela pegou sem nem me olhar. Era pouco. Era muito pouco. Me desculpa. Ajudem ela, gente. Saiam do transe. Saiam! Ajudem ela!

Algumas pessoas ajudaram. Talvez ela não comprasse a fralda, mas um jantar conseguia.

Uma vez que o ônibus não andava, ela desceu levando consigo aquele cheiro agressivo. Observei-a da janela por alguns minutos. Caminhou lentamente, uma mão na bengala, a outra nas costas, até o canto da calçada.

E olhou. Pra um lado, pro outro. Ficou parada.

O que fazer?

Ela sabia que ia morrer a qualquer instante. Mas a fome estava ali, agora. Ela tentou andar, mas faltou convicção. Tentou falar com alguém, mas faltou convicção. Um casal fingiu não ouvi-la.

Ficou ali, olhando.

Meu coração se despedaçou só de pensar o que estava naquela cabeça. A angústia que aquele coração carregava. As lágrimas que já não conseguiam sair daqueles olhos.

Dizem por aí que o capitalismo é ótimo.

Mas é que às vezes, às vezes, o pensamento racional nos torna desumanos. Insensíveis. Mortos-vivos. Um raciocínio lógico, cheio de argumentações – às vezes, nem isso – pode esconder uma série de verdades. A maioria delas. Aquelas que você precisa enxergar com o coração, na metáfora popular, ou com o inconsciente, no dialeto dos psicanalistas.

Nietzsche suspeitava, mas não conhecia o inconsciente. “Algo pensa em mim”, ele disse. Eu conheço, e isso me obriga a superá-lo. O cheiro de enxofre ficou na minha mão por muito tempo, eu o cheirava me sentindo culpado, e aos poucos ele me fez notar o quanto eu ainda tenho a aprender com o meu pai.

Espero que numa outra vida aquela voz não grite desespero, mas alegrias, ou quem sabe canções de amor.

2 comentários em “Enxofre”

  1. e a gente passa por pessoas assim todos os fucking dias…
    racionalmente sabemos que mais alguns reais, um prato de comida, umas roupas não vão resolver a vida de quem precisa, que essa ajuda vai se perder no mar de gente que ainda vai continuar sofrendo e precisando, mas talvez melhore pelo menos 1%.
    E se a ajuda, seja ela da forma que for, for apenas uma massagem no nosso ego, que seja. Prefiro conviver com o pensamento de “será que fiz isso pela pessoa ou por mim mesmo?” do que não fazer nada at all.

    Curtido por 1 pessoa

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