O Homem Fluvial

por Nelson Rodrigues

mario filho - foto 11

Amigos, Manchete pediu-me para escrever sobre Mario Filho. Ora, desde que meu irmão morreu, instalou-se em mim uma obsessão: falar dele e só dele. E Manchete não precisaria pedir. Minha vontade era sair, de porta em porta, dizendo a amigos, conhecidos e até desconhecidos: – “Mario Filho foi o único grande homem que eu conheci”. Vejam bem: o único, rigorosamente o único. Minha sensação é que, diante dele, todos nós somos pequeninos como aqueles anões de Velásquez. Tivemos cinquenta anos de convivência e, portanto, meio século de intimidade exemplar e implacável.

Vou começar dizendo que Mario Filho era de uma bondade desesperadora. Bom a cada minuto. Bom de uma bondade que, por vezes, nos agredia e humilhava. Se ele aparecesse, com um passarinho em cada ombro, eu não me admiraria com nada. Bom nada, a alegria de ser bom. Vejam todos os seus retratos: – era uma cara toda feita de alegria. Grato à vida, nunca se arrependeu de ser humano, de ser nosso semelhante. Era um ser atravessado de luz como um santo de vitral.

Meu Deus, eu gostaria de dar uma ideia da extensão e profundidade de sua obra. Mas antes preciso dizer que Mario Filho era um desses homens fluviais que nascem de vez em quando. Disse “fluvial” e explico: – imaginem um rio que banhasse e fertilizasse várias gerações. Assim foi Mario Filho. Há quarenta anos não há cronista, em todo o Brasil, não há vocação, não há talento que não tenha recebido a sua luz decisiva. Morreu e continuaremos a viver das rendas do seu gênio.

Hoje, eu e meus colegas andamos por aí, realizados, bem-sucedidos, temos automóveis e frequentamos boates; andamos de fronte erguida e o nosso palpite tem a imodéstia de uma última palavra. Mas eu gostaria de perguntar: – o que era e como era a crônica esportiva antes de Mario Filho? Simplesmente não era, simplesmente não havia. Sim, a crônica esportiva estava na sua pré-história, roía pedra nas cavernas.

Não vejam crueldade nas minhas palavras, mas apenas a simples e exata veracidade histórica. Bem me lembro do tempo em que comecei a escrever esporte. Meu companheiro de seção era um miserando, mais humilhado e mais ofendido do que o Marmeladov do Crime e castigo. Quando ria, ou sorria, mostrava uma antologia de focos dentários. E os outros colegas padeciam de igual miséria dostoievskiana. Era uso, então, entre os clubes, oferecer um lanche à crônica. Nada mais plangente e pungente do que a voracidade com que agredíamos os guaranás e os sanduíches.

Até que, um dia, Mario Filho apareceu. Pode-se datar o nascimento da crônica esportiva. Foi quando ele publicou uma imensa entrevista com Marcos de Mendonça. O famoso goleiro anunciava a sua volta. O patético, porém, não era o fato em si, mas a sua escandalosa valorização jornalística. A matéria inundava um espaço jamais concedido ao futebol: – meia página! Era a época em que o esporte vivia empurrado, escorraçado para um canto da página. O melhor jogo do mundo não merecia mais de três linhas. E o pior era a linguagem estarrecedora. Mario Filho usava a palavra viva, úmida, suada. Naquele tempo, os estilistas da seção de esporte assim redigiam a notícia de um Flamengo × Fluminense: – “Será levado a efeito amanhã, no aprazível field da rua Paissandu, o esperado prélio” etc. etc. E o cronista que conseguia esse nível de estilo se julgava um Proust.

A entrevista de Mario Filho foi um duro impacto, sobretudo pela linguagem. Ela saiu por volta aí de 1926, ou 27. Dir-se-ia um novo idioma atirado na cara do leitor. O público teria todo o direito de perguntar: – “Mas que língua é essa?”. Mesmo os melhores jornalistas da época escreviam de fraque. No teatro, Leopoldo Fróes falava com sotaque lisboeta. E a simplicidade seria uma degradação para qualquer jornal.

A entrevista de Marcos foi para nós, do esporte, uma Semana de Arte Moderna. Em meia página, Mario Filho profanou o bom gosto vigente até em jornal de modinhas. Ao mesmo tempo, fundava a nossa língua. E não foi só: – havia também, no seu texto, uma visão inesperada do futebol e do craque, um tratamento lírico, dramático e humorístico que ninguém usara antes. Criara-se uma distância espectral entre o futebol e o torcedor. Mario Filho tornou o leitor íntimo do fato. E, em reportagens seguintes, iria enriquecer o vocabulário da crônica com uma gíria libérrima.

Posso dizer que, desde então, ninguém influiu mais na imprensa brasileira. O próprio artigo de fundo deixou de ter a pose do mordomo de filme policial inglês. Nos tópicos, fazia-se, vez por outra, uma concessão à nova língua. Em suma: – o jornal deixava de ser besta. E, graças ainda a Mario Filho, o futebol invadiu o recinto sagrado da primeira página. Pouco antes, só o assassinato do rei de Portugal merecia uma manchete. E, súbito, o grande jogo começou a aparecer, no alto da página, em oito colunas frenéticas.

Tudo mudou, tudo: – títulos, subtítulos, legendas. Abria-se a página de esporte e lá vinha o soco visual: – o crioulão do Flamengo, de alto a baixo da página. E não era a pose hirta. Mario Filho acabou com o craque perfilado como se estivesse ouvindo o Hino Nacional. O craque aparecia em pleno movimento, crispado no seu esforço. E as figuras plásticas, elásticas, acrobáticas, enchiam as páginas de tensão e dramatismo. E, com isso, o diretor, o secretário e o gerente descobriam o futebol e o respectivo profissional. O cronista esportivo deixava de ser o pai da Sônia do Crime e castigo. Começou até a mudar fisicamente. Por outro lado, seus ternos e gravatas acompanhavam a fulminante ascensão social e econômica.

Mario Filho começou a sua obra, primeiro em A Manhã, depois na Crítica, ambos jornais do seu pai, o grande Mario Rodrigues. O rio continuou fazendo o seu curso generoso e umedecendo e fecundando a aridez do caminho. Mas eu não vou contar tudo o que ele fez, porque esse homem não parou nunca. Com seu formidável élan promocional, trouxe para o futebol novas massas. A geração do Maracanã não imagina como a multidão é coisa recente. Vejam as fotografias do Rio antigo. O brasileiro andava só, sim, o brasileiro andava desacompanhado. Quando três sujeitos se juntavam, as instituições tremiam. Em nossos velhos campos de futebol, o público era ralo, era escasso. Eis o que eu queria dizer: – Mario Filho foi, no futebol brasileiro, um criador de multidões.

Como ele recriou o Fla-Flu! Ora, o Fla-Flu, sem esta abreviação, existia desde 1912, ou 11. Até que Mario Filho resolveu promover o velho clássico, tão velho que era anterior à Primeira Batalha do Marne, anterior ao fuzilamento de Mata-Hari. Preliminarmente, mudou o nome do clássico para Fla-Flu. Em seguida, montou todo um folclore fascinante sobre o jogo superconhecido e desgastado. Eram os mesmos clubes, os mesmos jogadores. E, de repente, o Fla-Flu extroverteu todo o patético, todo o sortilégio que trazia no ventre. Senhoras, que não sabiam nem se a bola era redonda ou quadrada, compareceram ao jogo, magnetizadas pelo mito. A multidão do Fla-Flu é um milagre de Mario Filho.

Foi dirigir o Jornal dos Sports, quando era chefe ainda da página de esporte de O Globo. Neste último, escreveu sua famosa coluna “Da primeira fila”. A massa de figuras, de fatos, de ambientes, que ele dinamizou nas suas vocações, chega a ser inverossímil. Essas páginas de memória têm um tal dom de vida que se tornaram inesquecíveis. Muitos escritos de “Da primeira fila” alcançam o nível de Hemingway.

No Jornal dos Sports e no O Globo fez toda a batalha do Maracanã. Discutia-se ferozmente se o estádio devia ser no Derby ou em Jacarepaguá. Mario Filho percebeu o óbvio ululante, isto é, que Jacarepaguá era quase outro país, quase outro continente. O estádio teria que ser encravado no Derby. Mas havia os partidários truculentos de Jacarepaguá. Instalou-se a polêmica. Todas as manhãs, Mario Filho vinha, como um paladino da verdade, arremessar seu dardo contra as hordas do erro. O Maracanã foi uma de suas vitórias mais lindas. Depois, lançou a Copa Rio, um acontecimento de futebol mundial; e faria também o Torneio Rio-São Paulo; e exibiu, aqui, na Lagoa, os remadores fabulosos de Cambridge e Oxford.

O leitor, simples ou mal informado, pode perguntar: – “Mario Filho fez tudo?”. Eis a casta, a singela verdade: – fez tudo, sim, e repito: – tudo. Por sorte de parentesco, fui testemunha ocular e auditiva dessa obra colossal. Aí estão os Jogos da Primavera, a maior olimpíada feminina do mundo. Eu me lembro do primeiro desfile inaugural que vi, ainda em Álvaro Chaves. Ora, nós somos um povo triste, amargo e feio, mas feio principalmente. E confesso: – nos Jogos da Primavera, tremi de beleza. Eu não sabia que o Brasil era assim. Nenhum povo do mundo conseguiria juntar uma juventude como aquela – absurdamente linda.

E os Jogos Infantis, outro espetáculo sem igual no mundo? E o Torneio de Pelada, ali, no Aterro, com mais de mil times, e uma massa de 16 mil jogadores? Amigos, eu disse tanto, sem conseguir dizer tudo. Era assim esse homem. Com 57 anos, tinha a plenitude do infante dionisíaco. Muitas vezes eu o vi levantar-se de sua cadeira, no estádio. E a sua presença inundava o Maracanã.

Teria que falar também do escritor. Sempre declarei que Mario Filho era a minha grande admiração literária. Na minha opinião, ele é maior que todos os outros. Se Deus entrasse na minha sala e perguntasse: – “Você queria escrever como Guimarães Rosa ou Mario Filho?”, eu responderia, de fronte alta: – “Mario Filho, mil vezes Mario Filho”. E seu livro Infância de Portinari, que é uma das coisas mais belas e mais crispadas com que poderia sonhar um Charles Dickens.

Amigos, o verdadeiro rosto é o último e repito: – o rosto do morto não mente, não trai, não finge. Fui velar Mario Filho. Muitas vezes, debrucei-me sobre ele. Jamais alguém teve, em vida, um rosto tão doce, e tão compassivo e tão irmão; e jamais duas mãos entrelaçadas foram tão santas.

O maior estádio do mundo terá seu nome. Pena é que não o tenham enterrado lá. Com o Maracanã por túmulo, Mario Filho mereceria que o velassem multidões imortais.

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