“Há um parentesco óbvio entre o Fluminense e o Flamengo. E como este se gerou no ressentimento, eu diria que os dois são os irmãos Karamazov do futebol brasileiro”
– Nelson Rodrigues
“A multidão ia para o Fla-Flu e o estádio do Fluminense não cabia de tanta gente. Era uma febre, uma epidemia de Fla-Flu. Ninguém estava livre dela: pegava feito visgo.”
– Mario Filho
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Eu tenho um amigo, o Riccola, que dentre todas as pessoas que conheço talvez seja a melhor, mas reincide diariamente em um terrível erro que acomete somente aos piores seres humanos deste planeta: ele é flamenguista.
Você pode se perguntar como eu ainda tenho a pachorra de considerar um ser desta estirpe como um amigo. Mas é aquilo. É preciso estar disposto a ensinar, entende? E com flamenguista é preciso este tipo de atitude: didática, explicativa. Compreenda: seu time é o que há de pior, Ric.
Pois bem. Eu não lembro direito como que começou aquele diálogo, mas eu lembro que o entusiasmo fez com que ele terminasse de um jeito inusitado: “tá bom, vamos na torcida do Flamengo então”.
Obviamente eu não sou sócio do Fluminense, pois não gastarei do meu escasso provento mensal para ajudar o clube a pagar dívidas com o empresário, mas o Ric é sócio do time dele, pois péssimas escolhas, afinal, são tentadoras. Então ele ganha descontos nesse tipo de ocasião, e com isso argumentos para que eu assista ao jogo naquela latrina do bom senso que é a torcida rubro-negra.
O Fluminense estava com um time fraquérrimo, como de costume, e o Flamengo investia fortunas extremamente mal, pagando muito a péssimos jogadores e inflando uma autoestima que nem deveria existir pra começo de conversa.
“Compra no setor Leste”, avisou o menino Ric. Fi-lo. Leste superior, que era o que restava. “A tua é Superior também?”, perguntei. “Isso não quer dizer nada, não”, respondeu.
Ficou evidente desde aquele momento que a dele era Leste Inferior e isso ia dar problema, mas a capacidade de ignorar problemas eminentes é a principal força motriz deste país; então seguimos.
Não seria a primeira vez que eu e Ric íamos ao estádio juntos, e como os estádios no Rio de Janeiro costumavam estar às moscas, nós cultuávamos o agradável hábito de dar um dois no Brevston nos intervalos. Os seguranças estão sempre distantes e, se você procurar um lugar bem vazio, não há quem te delate. Aberto e gigantesco, o cheiro rapidamente some, e a experiência de estar num estádio ganha uma outra proporção, uma outra qualidade. Toda a iluminação se conjuga duma nova maneira, aquele monte de jogadores se movimentando parecem fazer muito mais sentido, e o pulsar das arquibancadas imprime uma emoção perceptivelmente mais eufórica.
Chegamos, então, às redondezas do Maracanã e perguntamos a um moço aonde entrávamos. “Superior à esquerda, Inferior à direita”, respondeu. O menino Ric até agora repetia com a certeza dos dissimulados que era tudo junto. Aí olhei pra ele. “Viu, até a fila é diferente”, argumentei, mas ele respondeu “é que lá dentro junta”.
Não juntava. Havia um único ponto de encontro entre os dois setores Leste, e este era separado por uma grade intransponível. Neste momento, Ric teve de dar o braço a torcer, e ficou ligeiramente irritado, “po, que sacanagem isso!”.
Nos despedimos e cada um seguiu para o Leste à sua maneira. Não havia como imaginar, contudo, que tal qual a mim, o Fluzão seria superior.
Chegando em nossos assentos, uma terrível descoberta: o Berckley ficara comigo e o isqueiro com ele.
O jogo começou e as coisas não andavam nada bem. Assim que o Flamengo abrira o marcador, Riccola infestava meu Zap Zap de mensagens JOCOSAS. Nesta altura do jogo eu me via cercado de flamenguistas, o que teria sido um problema caso eu tivesse ido com a camisa tricolor. Contudo, não sou bobo nem nada, e conheço bem a estirpe rubro-negra, então fui com uma camisa branca, sem indícios de bom gosto. Você sabe – flamenguistas odeiam o bom gosto.
Quando o gol de empate do Fluminense saiu não foi fácil. Dei um pulo da cadeira e precisei colocar a mão na boca e mordê-la com força para não gritar feito um desvairado por todos os cantos. Apertava as mãos, olhava desesperado de um lado para o outro. Fui, contudo, mais maduro do que o Ric, e ao invés de piadinhas de baixo nível filosófico, mandei-lhe um gif do Marcos Jr dançando.

Chegou o intervalo, jogo no empate. Mas, entre nós, a disputava continuava fora das quatro linhas. Passamos alguns minutos discutindo quem é que ia dar o que pro outro. Eu queria o isqueiro, ele o Brevlyn. Concordamos que poderia ser um pouco perigoso jogar um Breckster de um setor para o outro, enquanto o isqueiro, na pior das hipóteses, poderíamos pedir a ajuda de algum segurança, como de fato fizemos.
Havia um corredor, cercado por duas paredes que davam na altura de nossos peitos, separando o setor Superior do Inferior – além, é claro, de uns 8 metros de altura. Fomos até lá e aproveitamos para sacanear-mos mutuamente e comentar o jogo, ele xingando diversos jogadores por serem caros e ruins, eu xingando os meus por serem baratos e compreensivelmente ruins. Metros de distância nos separavam, mas nada que impedisse-nos de proferir os xingamentos acertados e em bom tom.
Munido de isqueiro e do ódio tricolor, percebi que só havia torcida rubro-negra nas cadeiras mais baixas e próximas ao campo. Lá em cima estava completamente vazio. Fui, então, até o ponto mais alto, da cadeira mais alta, do setor Leste Superior, e fiz o que havia de ser feito. Não existia uma única pessoa num raio de 300 bundas (vocês sabiam que em arquibancadas se metrifica distâncias em BUNDAS?). O segurança mais próximo não enxergaria nada nem que eu estivesse com um lança-chamas. E, indo contra toda lógica e racionalidade, aquele definitivamente era o melhor assento de todo o estádio. Que visão! Que amplitude! Que agradável solidão!
Começou o segundo tempo. Um jogo terrível, de baixíssimo nível, digno do futebol carioca que temos nos últimos anos, mas ao menos corrido, com francos ataques de ambos os lados, o que, se não denota qualidade, ao menos diverte o torcedor, principalmente se o torcedor estiver sob os efeitos serotoninicos da maldosa.
Eis que acontece. Algum jogador trajando o belíssimo uniforme tricolor dispara como um foguete pelo lado esquerdo, chega próximo à área e cruza rasteiro. Pará, o atraente lateral rubro-negro, corta a bola e estufa direto para as próprias redes. Gol contra! Gol da virada! Gol do Fluminense!
Amigos, que alegria descabida foi aquela.
Pulei, corri, sorri, saltei de um lado para o outro do Maracanã como um maluco perdendo completamente as estribeiras. Não havia um rubro-negro sequer para me agredir, tampouco para eu debochar! Só parei de pular quando pensei em alguma gracinha para sacanear o Ric.
Teria o Brevster afetado mais ao Pará do que a mim? A fumaça chegara até o campo??
Tristemente o jogo viria a terminar empatado, daqueles empates que ambas as torcidas saem decepcionadas, ainda que nós tricolores soubéssemos que o Pará nos salvara de uma enrascada.
Na saída, um princípio de confusão, como é de se esperar de rubro-negros. Uma gangue de torcida organizada esperava por tricolores desavisados na entrada do metrô. Estavam sem camisa e mal encarados, esperando por uma briga. Eu, com minha camisa branca, passava displicente pelos meliantes. Alguns passos à frente já estava tudo calmo, a ponto de eu me sentir confortável para sacanear o Ric.
– Ué, nera ricão? Compra o gol então, porra. Compra… o GUM! KKKKKKKKKKKK Só o salário do Pará já paga nosso elenco todo… ai ele faz aquilo! KKKKKKKKKKKKKKKKKKK
– Eu acho que você devia tomar mais cuidado com o que você fala nesse ambiente… – disse o Ric, apontando para a maioria de rubro-negros mal encarados que nos cercavam. Dois, inclusive, corriam desvairadamente e pulavam as grades da linha do trem.
– Rapaz, eu olho para a cara do perigo… e eu rio!
É bom demais mostrar ao irmão rico que história não se compra.